sábado, 8 de fevereiro de 2014

Introdução ao tráfico de pessoas

Palinha do livro sobre crimes sexuais, quase finalizado. Em breve entrego o texto à editora para publicação. Enquanto isso, continuo soltando amostras para que o blog não fique abandonado, se sentindo rejeitado. Abraços a todos!

“Em meados do século XIX, rejeições ao tráfico de pessoas negras africanas para práticas escravistas tomaram fôlego. Junto a essa urgência, não mais humanitária que econômica, agregou-se a preocupação com o tráfico de mulheres brancas para prostituição. Apesar de podermos estabelecer relações entre tais fenômenos, é preciso ficar claro que são acontecimentos distintos, pois são movidos por preocupações diversas. A elaboração da categoria tráfico de mulheres brancas, além de trazer consigo um racismo latente, se fez com base no empenho em proteger o ideal de pureza feminina.”[1]  O texto de Anamaria Marcon Venson e Joana Maria Pedro reflete bem o início da preocupação jurídica com o tráfico de pessoas para fim sexual, originalmente focado nas mulheres que se deslocavam entre fronteiras para exercício da prostituição.

O Criminal Law Amendment Act, de 1885, talvez seja o primeiro diploma jurídico a se ocupar do tema, embora não de forma exclusiva. Mas apenas em 1904 (em 1902 a questão já fora abordada na Conferência de Paris) o Brasil começa a demonstrar preocupação com o fenômeno, figurando como signatário do Acordo para a Repressão do Tráfico de Mulheres Brancas, patrocinado pela Liga das Nações e internalizado em 1905, através do Decreto nº 5.591. Esse acordo visava a coibir o aliciamento de mulheres para prostituição no estrangeiro. Explicam Anamaria Venson e Joana Pedro: “Na virada do século XIX para o XX, a prostituição era considerada uma ameaça ao corpo, à família, ao casamento, ao trabalho e à propriedade, foi entendida como 'doença' e tornou-se alvo de planos de profilaxia. As prostitutas eram perseguidas por serem consideradas empecilhos à civilização, à 'limpeza moral' da cidade, e, por isso, sua circulação deveria ser controlada e suas casas deveriam ser afastadas para espaços confinados, definidos por reformas urbanas. É também dessa época a invenção da associação entre mulher e debilidade/doença. Essa noção está em jogo nas associações entre doença e passividade. A discursividade que constituiu a prostituição como um problema só foi possível mediante a medicalização e o policiamento da sexualidade, e o tráfico tornou-se dizível entrelaçado aos discursos médico e policialesco investidos no rechaço à prostituição. Prostituição e tráfico de pessoas, no modo como são reapropriados hoje, são invenções coincidentes. Ora, as inquietações a respeito de tais práticas não foram exatamente um efeito de preocupações humanitárias, afinal, a noção de direitos humanos tornou-se dizível décadas depois.”[2] 

A partir daí, houve vários documentos internacionais abordando o tráfico de pessoas, a saber: (a) Convenção Internacional para a Supressão do Tráfico de Escravas Brancas (1910); (b) Convenção Internacional para a Repressão do Tráfico de Mulheres e Crianças (1921); (c) Convenção Internacional para a Repressão do Tráfico de Mulheres Maiores (1933); (d) Convenção e Protocolo Final para a Repressão do Tráfico de Pessoas e do Lenocínio (1949); (e) Convenção para a Supressão do Tráfico de Pessoas e da Exploração da Prostituição de Outrem (1949). Todavia, merece análise mais detida a Convenção de Palermo (2000), que tem por objeto o crime organizado transnacional. A convenção, promulgada em território brasileiro pelo Decreto nº 5.015/2004, recebeu um protocolo adicional (este promulgado pelo Decreto nº 5.017) em que o Brasil se obriga a prevenir e combater o tráfico de pessoas, em especial mulheres, crianças e adolescentes, embora o diploma não se limite às questões etárias e de gênero. Importa salientar, todavia, que o protocolo não limita o tráfico de pessoas ao exercício da prostituição no estrangeiro, apresentando conteúdo mais abrangente, consoante disposição constante do artigo 3º, a: “A expressão 'tráfico de pessoas' significa o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos.” Verifica-se, pois, que o tratado vai além das questões sexuais, alcançando desde outras várias espécies de intervenção na liberdade pessoal, até ações que importam prejuízo à integridade corporal ou à saúde, ou mesmo que atentam contra a vida da vítima, como é o caso do tráfico de pessoas para remoção de órgãos. A legislação brasileira, contudo, foi tímida na incriminação, pois o artigo 231 do Código Penal contempla exclusivamente o tráfico de pessoas para fim de prostituição ou exploração sexual, que, de todas as situações narradas no protocolo adicional, talvez seja a menos lesiva. Aproveitou-se a redação do antigo crime de “tráfico de mulheres”, outrora um dos crimes contra os costumes, mantendo-o em sua posição sistemática original, quando o melhor seria transportar a conduta para os crimes contra a liberdade individual. Assim, tem-se uma previsão normativa mutilada, aquém daquilo que o Brasil se obrigou internacionalmente a reprimir.

De toda sorte, mesmo no que concerne ao tráfico para finalidade sexual, não são poucas as críticas da doutrina à tipificação. Manifesta-se Paulo Queiroz: “No particular, o discurso dos penalistas mais críticos costuma ser ambíguo, porque, embora proponham a abolição dos tipos penais que criminalizam, indiretamente, a prostituição (lenocínio), em geral são favoráveis à tipificação do tráfico internacional. Alegam que, não raro, as pessoas levadas para o exterior ou trazidas para o Brasil são enganadas pelos traficantes, que ora ocultam que aqui ou lá exercerão a prostituição, ora fazem promessas de emprego e ora prometem uma vida de luxo, ostentação e riqueza. Mas a verdade é que muitas logo terão seus passaportes confiscados e serão autênticas escravas sexuais, sem dinheiro nem liberdade. Que tudo isso acontece ou pode acontecer, embora não se saiba com que frequência, é um fato. Ocorre que, quando houver, estaremos diante de crimes contra a pessoa (sequestro ou cárcere privado, redução a condição análoga a de escravo etc.), já autonomamente punidos, os quais poderão ser qualificados ou terem suas penas aumentadas nesses casos (exploração da prostituição e afins).”[3]  Nucci endossa a posição: “O título do crime é mais adequado do que o conteúdo do tipo penal. Traficar pessoas é um mal quando se destina à exploração sexual, em autêntica forma de escravidão humana. Porém, auxiliar de qualquer maneira uma pessoa a ir para o exterior, para o exercício da prostituição individual – atividade lícita – não deveria ser objeto de incriminação. Tampouco facilitar a entrada de qualquer um que queira se dedicar à prostituição. Encaixem-se essas duas hipóteses em acordos consensuais entre o favorecedor e o viajante, que pretende prostituir-se, lá ou aqui. São maiores, capazes, inexiste fraude, abuso ou qualquer espécie de violência ou ameaça. Não se vislumbra qualquer lesão à dignidade sexual.”[4]  Pensamos da mesma forma. É evidente que o tráfico de pessoas pode ser extremamente pernicioso, uma vez que pressupõe o afastamento da pessoa traficada da sua esfera habitual de convivência, reduzindo sua capacidade de defesa. É evidente, também, que em inúmeros casos de tráfico de pessoas as vítimas são compelidas aos atos sexuais mediante violência ou grave ameaça ou obrigadas ao trabalho extenuante, auferindo apenas parcela diminuta da remuneração, ao invés de perceberem os vultosos pagamentos prometidos por traficantes. Mas é igualmente certo que nem sempre a situação ocorre desta forma. Muitas vezes há natural troca de interesses entre ambas as partes. Não chegamos ao ponto de, como Paulo Queiroz, defendermos que nossa legislação, em artigos tantos, cobre todas as hipóteses em que o tráfico de pessoas pode se mostrar criminalmente relevante, dispensando-se a tipificação autônoma. Entendemos, no entanto, que o tipo penal deveria ser deslocado para os crimes contra a liberdade individual, aumentando seu espectro por um lado – isto é, livrando-se das amarras da criminalização da sexualidade, encampando outras hipóteses, tal qual proposto no Protocolo Adicional – e restringindo sua aplicabilidade apenas às hipóteses verdadeiramente restritivas da liberdade, que atingirão a vítima em sua dignidade. O mero deslocamento de pessoas para finalidade sexual, quando ambas as partes estão de acordo e respeitam os interesses recíprocos, ao contrário de atingir a pessoa em sua liberdade, reafirma-a.

Obviamente, não faltam vozes dissonantes, que compõem inclusive a parcela majoritária da doutrina.[5]  Apregoa-se, em síntese, que o tráfico de pessoas atinge vítimas que, em regra, estão em situação de vulnerabilidade socioeconômica, o que afeta sua capacidade de resistência; que os meios executórios usados pelos traficantes – ardis, constrangimento etc. – afetam a autonomia de vontade da vítima; que ocorre um processo de “coisificação” da pessoa traficada, tratada como mercadoria por aqueles que integram a atividade criminosa; que o tráfico de pessoas é praticado por verdadeiras organizações criminosas, que auferem lucros não apenas com a exploração sexual, mas que se dedicam a diversos outros ilícitos e devem ser combatidas, etc. Correto, correto, correto e... correto! São argumentos irrefutáveis, mas que em nada contradizem o exposto no parágrafo anterior. Não é porque o tráfico de pessoas merece punição – e merece, quando de fato atentatório à dignidade da vítima, em seu aspecto da liberdade individual, mas nunca alheio a essa hipótese – que o artigo 231 do CP se torna automaticamente defensável. Cremos, portanto, que a melhor intepretação do dispositivo é aquela que vincula sua aplicabilidade ao reconhecimento de efetiva lesão à liberdade da vítima.

O crime em comento, inicialmente, tinha por objeto exclusivo o tráfico de mulheres para fim de prostituição (“Promover ou facilitar a entrada, no território nacional, de mulher que nele venha exercer a prostituição, ou a saída de mulher que vá exercê-la no estrangeiro”). Esse panorama legislativo somente veio a ser alterado com a Lei nº 11.106/05, que aboliu a distinção de gênero (“Promover, intermediar ou facilitar a entrada, no território nacional, de pessoa que venha exercer a prostituição ou a saída de pessoa para exercê-la no estrangeiro”). Essa mesma lei foi responsável pela criação do crime de tráfico interno de pessoas, inserindo no Código Penal o artigo 231-A (“Promover, intermediar ou facilitar, no território nacional, o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento da pessoa que venha exercer a prostituição”). A Lei nº 12.015/09, além de acrescentar a referência à exploração sexual aos dos dispositivos, teve o mérito de reproduzir no tráfico internacional de pessoas os mesmos meios executórios do tráfico interno, já que era incompreensível o tratamento desigual aos temas. Outras modificações também foram verificadas, as quais serão especificadas no momento certo.

Aduza-se, por derradeiro, que por questões didáticas artigos 231 e 231-A serão estudados em conjunto, pois, com redação típica extremamente semelhante, nada justificaria a redundância da análise apartada.

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[1] VENSON, Anamaria Marcon; PEDRO, Joana Maria. Tráfico de pessoas: uma história do conceito. São Paulo: Revista Brasileira de História, vol.33, n.65, 2013.
[2] Idem, ibidem.
[3] QUEIROZ, Paulo. Op. cit., p. 573-574.
[4] NUCCI, Guilherme de Souza. Op. cit., p. 189-190.
[5] Nesse sentido, por todos, Luiz Regis Prado (op. cit., p. 881 e 882) e Cezar Roberto Bitencourt (op. cit.,p. 75). Este, em sua obra, aduz que “a despeito da inviabilidade de eliminar a prostituição, que é um mal que aflige a todos os países, uns mais, outros menos, este dispositivo tenta, pelo menos, impedir que prostitutas estrangeiras ampliem esse problema ético-social, que, por si só, já é grande demais.”