domingo, 25 de agosto de 2013

A inconstitucionalidade da tortura por omissão

Recentemente participei de investigação sobre crime de tortura com resultado morte, ocorrido na área da minha Delegacia, em que o padrasto da vítima - esta uma criança de três anos de idade - a agredia corriqueiramente, chegando mesmo a morder seu corpo. O ciclo de violência culminou, no dia 05/08, em um soco desferido contra a barriga da vítima, causador de hemorragia abdominal e consequente óbito. A mãe da criança, que conhecia os "castigos" impostos à vítima e com eles coadunava, além de nada ter feito para impedir as agressões, ainda demorou a socorrê-la (certamente por receio de ver a tortura descoberta), somente o fazendo horas depois de a criança apresentar os primeiros sinais de que sua saúde se deteriorava, sendo certo que o falecimento se deu antes da chegada da vítima ao hospital.

Relatei esse inquérito policial por esses dias e, em conclusão, sustentei que a mãe não poderia responder pelo delito de tortura por omissão, previsto no artigo 1º, § 2º, da Lei nº 9.455/97, mas sim pelo inciso II do mesmo dispositivo, tal qual o padrasto. Creio que esta é a melhor solução, razão pela qual compartilho minha conclusão com vocês logo abaixo.

"(...) No que concerne ao tipo penal que define a tortura por omissão, algumas considerações devem ser expendidas. Primeiramente, cumpre assinalar que a Constituição Federal, em seu artigo 5º, XLIII, especifica que 'a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura , o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem'. Observa-se, assim, que o texto constitucional equipara em grau de reprovabilidade a execução da tortura e a omissão, quando o sujeito ativo, podendo agir, deixa de evitá-la. O mandamento constitucional, inclusive, erige a conduta omissiva à categoria de crime equiparado a hediondo. Por conseguinte, salta aos olhos a inconstitucionalidade do § 2º do artigo 1º da Lei nº 9.455/97. Este dispositivo deu tratamento mais brando à omissão em casos de tortura, seja quando o agente não a impede, seja quando deixa de investigá-la. Embora não haja ressalvas quanto à segunda hipótese, que mais se assemelha a uma prevaricação e, portanto, prevê uma reprimenda adequada à magnitude do injusto, a primeira hipótese se choca com o texto constitucional, violando a hierarquia normativa pátria. Isso porque há opinião dominante no sentido de que o mencionado § 2º não ostenta a característica de hediondez, ainda que por equiparação, já que a sanção penal a ele cominada é demasiadamente tênue, estipulando a detenção (de um a quatro anos – sanção mais leve do que a existente para o crime de furto, cuja pena é de reclusão) como espécie de pena privativa de liberdade. De fato, qualidade e quantidade de pena estabelecidas para o tipo penal não se coadunam com os institutos da Lei nº 8.072/90, demonstrando o descompasso na previsão legislativa da tortura por omissão, impondo-se seu deslocamento para o caput, inciso I ou II, ou mesmo para o § 1º, do artigo 1º.

Não bastasse esse contraste entre a Constituição Federal e a Lei nº 9.455/97, a tipificação, tal como redigida, fere princípios-gerais do Direito Penal, a saber: isonomia e proporcionalidade. Em tema de isonomia, não impedimento do crime e ausência de apuração são condutas absolutamente diferentes, ainda que ambas mereçam incriminação. Naquela, o agente anui com a prática criminosa ou ao menos se acovarda, colocando seus interesses pessoais acima do sofrimento alheio. Nesta, mesmo não se afastando o temor de represálias como móvel do delito, costumeiramente a intenção é acobertar os atos alheios, mas posteriormente ao sofrimento já imposto, que não pode mais ser evitado. Ou seja, avulta em gravidade o primeiro caso, ainda que não se negue repulsa ao outro. De toda sorte, impossível o tratamento paritário. Ademais, caso a omissão seja a postura adotada por agente garantidor, na quase totalidade das figuras típicas do Código Penal o omitente responde pelo resultado, ou seja, pelo mesmo delito praticado por quem agiu sem enfrentar oposição por parte do garante. Por que, então, o tratamento diferenciado em caso de tortura? Já no que toca à proporcionalidade, o princípio, a par de evitar eventuais excessos arbitrários, também visa a controlar a insuficiência nas previsões legislativas. Não se trata, aqui, da colisão entre princípios fundamentais, a ser resolvida pelo juízo de ponderação de Robert Alexy, tão criticado por Habermas, mas da simples acepção penal da proporcionalidade, ou seja, da equivalência que se busca entre a função coativa da pena e a finalidade da norma, assim definida por Hassemer. Ao se constatar que a omissão é tão odiosa quanto a tortura propriamente dita, torna-se evidente o anacronismo da pena cominada ao § 2º. A proporcionalidade, insta salientar, é decorrência óbvia da individualização legislativa da pena, que, ao seu turno, representa um dos aspectos, talvez o menos versado, da culpabilidade. Trata-se, pois, de tema que repousa em leito constitucional."

Evidentemente, para evitar constrangimentos, optei por não transcrever o relatório em sua totalidade, esperando que isso não prejudique coerência e clareza do raciocínio. Abraços a todos!