segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Homicídio praticado por milícia privada


Segue trecho do livro Crimes em Espécie - Crimes Contra a Pessoa, de minha autoria, que será em breve lançado pela Editora Freitas Bastos:

"Homicídio praticado por milícia privada, sob o pretexto de prestação de serviço de segurança, ou por grupo de extermínio

A Lei nº 12.720/12, além de incluir um novo artigo no Código Penal (artigo 288-A), também aumentou a pena do homicídio em um terço, quando praticado nas hipóteses acima descritas. Obviamente, embora a lei não fale (e este é o primeiro dos muitos equívocos aqui observados), trata-se apenas do homicídio doloso, pois nenhuma relevância haveria em aumentar a pena da modalidade culposa quando praticada nas mesmas circunstâncias, pois ausente qualquer situação de maior reprovabilidade da conduta.

A exata compreensão das majorantes depende da conceituação de três termos contidos no diploma inovador, sobre os quais existe completa omissão legal definidora, a ponto de ensejar discussões acerca de possível violação ao princípio da taxatividade.[1]  São eles: organização paramilitar; milícia privada; grupo; e esquadrão.

Organização paramilitar, segundo Cezar Roberto Bitencourt, “é uma associação civil armada constituída, basicamente, por civis, embora possa contar também com militares, mas em atividade civil, com estrutura similar à militar”.[2]  Prossegue o autor: “Trata-se de uma espécie de organização civil, com finalidade civil ilegal e violenta, à margem da ordem jurídica, com características similares à força militar, mas que age na clandestinidade”.[3]  Sobre o número mínimo de integrantes da organização, reina a mais absoluta incerteza. Afirma Bitencourt: “O texto legal é, no particular, completamente omisso, voluntária ou involuntariamente, ficando a cargo de doutrina e jurisprudência sua interpretação e criação que deve ocorrer lógica e racionalmente. Poder-se-ia admitir a configuração de organização, milícia, grupo ou esquadrão composto somente por duas pessoas, que é, claramente, a menor reunião de pessoas? Logicamente, não, pois nenhuma das figuras mencionadas, por definição, admite sua formação tão somente com dois membros. Vejamos, exemplificativamente, o ‘grupo’ – que nos parece, de todos, o menor agrupamento de seres -, não se coaduna com a ideia de ‘par’, isto é, dois indivíduos não  formam um grupo, mas apenas uma dupla, que não se confunde com grupo. Podemos ter dúvida, enfim, sobre a quantidade mínima, se três ou mais membros, mas uma coisa é certa: não pode ser menos, pois, nesse caso, repetindo, não seria um grupo, mas somente uma dupla, ou seja, apenas um par e não um grupo! Assim, no nosso entendimento, o crime de ‘constituição de milícia privada’ não pode ser composto somente de duas pessoas; estamos convencidos de que, ante a lacuna legal, seja adequado exigir-se, a exemplo do crime de quadrilha (288), o mínimo de mais de três pessoas. Realmente, sua similaride e proximidade geográfica com aquele autoriza o entendimento que exige a mesma estrutura numérica, qual seja, mais de três pessoas reunidas com a finalidade de praticar crimes previstos no Código Penal. Essa interpretação restritiva é uma exigência da tipicidade estrita, que não permite uma interpretação extensiva que poderá alcançar conduta não abrangida pelo texto legal incriminador. Com efeito, afronta a lógica e o bom senso imaginar-se a formação de ‘esquadrão’, ‘milícia particular’ ou ‘organização paramilitar’ com número de participantes inferior à quadrilha prevista no art. 288 do CPP. Tratam-se, na verdade, de agrupamentos ou associações de pessoas com a finalidade delinquir que envolvem inúmeras pessoas, os quais não se estruturam apenas com dois ou três indivíduos e, in concreto, não será difícil identificar essa quantidade mínima (mais de três) como integrantes de tais milícias. Pensar diferente significa criar figura mais rigorosa que a pretendida pelo legislador, agravando a situação de envolvidos ao conceber como típicas condutas não recepcionadas pelo texto legal. No mínimo, está-se diante de um risco que o intérprete não tem o direito de correr em prejuízo do cidadão, ante uma lacuna legal”.[4]  Rogério Sanches, ao seu turno, após consignar as posições de Alberto Silva Franco e Luiz Vicente Cernicchiaro, emanadas em estudo à expressão “grupo de extermínio”, constante da Lei nº 8.072/90 (segundo aquele, no mínimo quatro integrantes; para este, três ou mais), insinua sua opção: “Com o advento da Lei 12.694/12 (organizações criminosas), já percebemos doutrina preferindo fundamentar o raciocínio no conceito de ‘grupo’ trazido no seu artigo 2º, que se contenta com a reunião de três ou mais pessoas”.[5]  No mesmo sentido é a lição de Eduardo Luiz Santos Cabette: “Já despontam duas correntes doutrinárias, uma afirmando a necessidade de 4 componentes e outra de 3 componentes, ambas com bons argumentos de sustentação. Advoga-se a tese de 4 componentes mediante uma interpretação sistemática do crime do novo artigo 288 – A com o crime de quadrilha ou bando previsto no artigo 288, CP. Para a configuração da quadrilha são necessárias mais de 3 pessoas, conforme consta da dicção direta e reta do artigo 288, CP. Ora, se para a formação de uma simples quadrilha são necessárias pelo menos 4 pessoas, o que se dirá sobre uma organização paramilitar ou um grupo de extermínio? Doutra banda encontra-se o argumento de que, na falta de definição legal, que é o que ocorre com o artigo 288 – A e os parágrafos 6º e 7º dos artigos 121 e 129 respectivamente, todos do Código Penal, não se poderia considerar como grupo, organização, milícia ou esquadrão uma ou duas pessoas, mas apenas a partir de três. Quanto ao artigo 288, CP, fato é que nele o legislador foi expresso, o que está a autorizar claramente a exigência de ao menos 4 pessoas. No silêncio da lei, um grupo deve ser considerado como pelo menos 3 pessoas. Tal pensamento já encontra abrigo em tradicional interpretação de crime de concurso necessário para o qual o legislador não tomou a medida de estabelecer o número mínimo de participantes, qual seja, o crime de rixa (artigo 137, CP). Esse entendimento é pacífico doutrinária e jurisprudencialmente. Tende-se a acatar esta segunda posição, inclusive por um argumento que se considera decisivo. Ocorre que a Lei 9.034/95 que trata do chamado 'Crime Organizado', foi recentemente alterada pela Lei 12.694/12. Essa lei, dentre outras modificações, trouxe um conceito de 'crime organizado', anteriormente inexistente na legislação brasileira. Nessa conceituação, agora constante do artigo 2º, da Lei 9.034/95, consta que uma 'organização criminosa' somente é admitida com a associação de pelo menos 3 pessoas. Observe-se que a Lei 12.720/12 menciona na redação do artigo 288 – A, CP  'organização' paramilitar, e neste e demais dispositivos em milícia privada ou particular, grupo de extermínio e esquadrão. Ora, todos esses grupos são organizações e podem inclusive, dependendo do caso e demais características exigidas pelo novel artigo 2º, da Lei 9.034/95 com a nova redação dada pela Lei 12.694/12, configurarem 'organizações criminosas'. Nesse passo, parece que a orientação mais escorreita em interpretação sistemática, seja com o Código Penal (artigo 137, CP), seja com a legislação esparsa (artigo 2º, da Lei do Crime Organizado), é a de que o número mínimo somente pode ser de 3 pessoas”.[6]  Parece-nos que esta seja efetivamente a melhor posição, a despeito da estranheza que possa causar em relação ao descompasso com o crime de quadrilha ou bando (de se ver que a adoção da posição diversa – a exigir no mínimo quatro pessoas – também encontraria descompasso, desta feita com o conceito de organização criminosa, de modo que a incongruência sistemática existe de uma forma ou de outra). Em verdade, o ideal seria o reconhecimento da evidente inconstitucionalidade do novo dispositivo incriminador, por violação ao princípio da taxatividade (como costuma ocorrer quando leis são elaboradas de maneira apressada, apenas para aproveitamento do clamor popular ou de eventual clima legislativo favorável à aprovação do projeto, sem que haja preocupação com a boa técnica penal). Infelizmente, enquanto não advém a declaração de inconstitucionalidade (se é que ela virá), incumbe ao intérprete a árdua tarefa de explicar o inexplicável.

Milícia privada, termo de difícil conceituação, é definida por Rogério Greco como aquela “de natureza paramilitar, isto é, a uma organização não estatal, que atua ilegalmente, mediante o emprego da força, com a utilização de armas, impondo seu regime de terror em uma determinada localidade”.[7]  De fato, o termo milícia deita raízes em tropas de segunda linha que constituíam reserva auxiliar ao Exército do Império português (razão pela qual a polícia militar durante muito tempo foi denominada “milícia”, por ser considerada uma corporação auxiliar às Forças Armadas).[8]  Justamente por isso a preocupação do texto legal em qualificar as milícias como “privadas”, isto é, de caráter paramilitar, atuando à margem do Estado (as milícias públicas, embora essa denominação tenha caído em desuso, seriam forças estatais regulares). Todavia, em que se diferem “milícias privadas” e “organizações paramilitares”? Rogério Greco, citando o sociólogo Ignácio Cano, aponta características peculiares das milícias: (a) controle de um território e da população que nele habita por parte de um grupo armado irregular; (b) o caráter coativo desse controle; (c) o ânimo de lucro individual como motivação central; (d) um discurso de legitimação referido à proteção dos moradores e à instauração de uma ordem; (e) a participação ativa e reconhecida dos agentes do Estado.[9]  Assemelhada é a definição de Cezar Roberto Bitencourt: “Milícia particular tem sido definida como um grupo de pessoas (que podem ser civis e/ou militares), que, alegadamente, pretenderia garantir a segurança de famílias, residências e estabelecimentos comerciais ou industriais. Haveria, aparentemente, a intenção de praticar o bem comum, isto é, trabalhar em prol do bem estar da comunidade, assegurando-lhe sossego, paz e tranquilidade, que foram perdidos em razão da violência urbana. No entanto, essa atividade não decorre da adesão espontânea da comunidade, mas é imposta mediante coação, violência e grave ameaça, podendo resultar, inclusive, em eliminação de eventuais renitentes. Na realidade, há uma verdadeira ocupação de território, numa espécie de Estado paralelo, com a finalidade de explorar as pessoas carentes”.[10]  Note-se que o autor não menciona a obrigatória participação de agentes do Estado (com o que concordamos, embora isso ocorra no mais das vezes). Aditamos, ainda, um traço distintivo: organização paramilitar insinua uma associação mais numerosa do que a milícia privada (entretanto, qual seria o misterioso número mínimo de agentes, a fim de se caracterizar essa maior quantidade de integrantes? Ah, o legislador...).

Grupo e esquadrão, ao seu turno, são termos de grande similaridade. De início, advertimos: devem eles ser dedicados ao extermínio de pessoas (parece-nos que o legislador, aqui, quis se referir às expressões “grupos de extermínio” e “esquadrões da morte”, notadamente leigos e de absoluta imprecisão teórica). Qualquer outro entendimento redundaria na revogação tácita do crime de quadrilha ou bando (artigo 288 do CP), o que, à evidência, não foi a intenção do legislador. Senão, vejamos: o artigo 288 tipifica exatamente a existência de um grupo de pessoas (juridicamente denominado quadrilha ou bando, mas que nem por isso deixa de ser um grupo) dedicado a atividades criminosas. O “grupo” a que se refere o artigo 288-A também é uma reunião de pessoas. Se entendermos que a parte final do artigo 288-A, que menciona que as associações previstas no dispositivo têm por objetivo a prática de qualquer dos crimes previstos no Código Penal, se aplica ao termo “grupo”, a maior parte das hipóteses de aplicabilidade do artigo 288 restaria frustrada. Isso porque passaria a existir a impossibilidade legal de uma quadrilha ou bando se dedicar ao cometimento de crimes do Código Penal (hipótese que invariavelmente determinaria o reconhecimento de um “grupo” do artigo 288-A). Sobrariam para o artigo 288 os crimes previstos em lei especial (desde que, é claro, ausente qualquer outra previsão específica, como o artigo 35 da Lei 11.343/06), o que causaria insustentável desigualdade: por qual motivo as associações para a prática de crimes do Código Penal deveriam ser punidas de forma diferenciada daquelas dedicadas a crimes previstos em lei especial, inclusive com sanção mais severa na primeira hipótese? Portanto, entendemos que a expressão “qualquer dos crimes deste código”, contida no artigo 288-A somente se refere às organizações paramilitares e às milícias privadas. Aos grupos e esquadrões, mister a prática de “extermínios” (essa assertiva, inclusive, encontra respaldo na nova majorante referente ao crime de homicídio, que expressamente fala em “grupo de extermínio”). Esquadrão se difere de grupo por exigir uma estrutura hierarquicamente militarizada, tal qual as organizações paramilitares e as milícias, ainda que sem o poderio e a penetração comunitária destas. Nesse sentido é o ensinamento de Valter Kenji Ishida, para quem o esquadrão também é numericamente superior ao grupo (não havendo como precisar essa superioridade numérica).[11]  Há, no entanto, quem trate “grupo” e “esquadrão” como sinônimos.[12] 

Anote-se, ainda, que qualquer que seja a hipótese de agrupamento de pessoas, deve ela observar um vínculo estável e permanente entre os integrantes, não havendo se confundir o artigo 288-A do Código Penal com o mero concurso eventual de pessoas.

Retornando ao homicídio, percebe-se que a causa de aumento de pena não menciona expressamente todas as formas associativas do artigo 288-A em seu texto: faltam, aparentemente, as organizações paramilitares e os esquadrões. Assim, vamos supor que integrantes de uma organização ou de um esquadrão pratiquem o homicídio de outrem. Estariam eles sujeitos a uma pena mais elevada? Entendemos que sim, a despeito da aparente omissão legal (outro entendimento redundaria em ausência de lógica – embora isso não seja espantoso em nosso ordenamento jurídico – e, ainda pior, em cristalina desproporcionalidade). Isso porque são estruturas criminosas legalmente equiparadas pelo artigo 288-A, inclusive na denominação, já que o artigo recebe nomen juris de “constituição de milícia privada”. Podemos disso extrair que existe um gênero (“milícia privada”), do qual são espécies a organização paramilitar, as milícias privadas propriamente ditas, os grupos e os esquadrões. No artigo 121, § 6º, do CP, o termo milícia privada foi usado desta forma genérica, englobando todas as espécies. A referência em apartado ao “grupo de extermínio” se deve à necessidade de demonstrar sua compatibilidade com a Lei dos Crimes Hediondos (artigo 1º, I, da Lei 8.072/90). E também para demonstrar que, nessa hipótese, o pretexto de “prestação de serviço de segurança” fica alijado, sendo ele atinente apenas às demais hipóteses associativas.

Aliás, esse pretexto é exigido apenas para a configuração da majorante do homicídio. Não se trata de elementar, por exemplo, da constituição de organização paramilitar, ainda que esteja umbilicalmente associado ao conceito de milícia privada propriamente dita.

No que concerne à Lei dos Crimes Hediondos, deve ser ressaltado que a menção única ao grupo de extermínio (artigo 1º, I, da Lei nº 8.072/90) não afasta a hediondez dos assassínios cometidos pelos demais agrupamentos. Isso porque invariavelmente o homicídio será qualificado (ao menos pela motivação torpe).
Uma última questão se impõe: aquele que pratica um homicídio majorado por integrar milícia privada, dando-se a morte a pretexto de prestação de serviço de segurança, ou por integrar grupo de extermínio pode ser também responsabilizado pelo crime autônomo do artigo 288-A do CP, ou tal cumulação (no caso haveria concurso material) constituiria inaceitável bis in idem? Com a palavra, o STJ, tratando de situação análoga: “Em princípio, é possível considerar a circunstância da existência de quadrilha como circunstância qualificadora do crime de extorsão mediante sequestro e, ao mesmo tempo, tê-la também em conta para firma o crime autônomo, porquanto a objetividade jurídica dos tipos (quadrilha e extorsão qualificada) são autônomas e independentes. Precedentes desta Corte e do Supremo.”[13]  Ainda: “Prática concomitante do crime de roubo circunstanciado pelo concurso de agentes. Bis in idem não caracterizado. (...) 10. É perfeitamente possível a coexistência entre o crime de formação de quadrilha ou bando e o de extorsão mediante sequestro pelo concurso de agentes, porquanto os bens jurídicos tutelados são distintos e os crimes, autônomos. Precedentes do STF.”[14]  No mesmo sentido, o TRF da 5ª Região: “PENAL E PROCESSUAL PENAL. APELAÇÕES CRIMINAIS. CRIMES DE EXTORSÃO MEDIANTE SEQÜESTRO, QUALIFICADO PELA PRÁTICA POR BANDO OU QUADRILHA (ART. 159, PARÁGRAFO1º, DO CP), E DE BANDO OU QUADRILHA ARMADA (ART. 288 DO CP C/C ART. 8º DA LEI Nº 8.072/90). Indivíduos que privaram a liberdade de gerente da Caixa Econômica Federal e de seus familiares, mantendo-os em cárcere como meio de obter prestação positiva, consistente na entrega de valores existentes no Banco. Conduta que se ajusta ao tipo descrito no artigo 159 do Código Penal 4. Prática, igualmente, do crime de bando ou quadrilha, previsto no artigo 288 do Código Penal. 5. Possibilidade de concurso material entre o crime de extorsão mediante sequestro qualificado pela quadrilha ou bando e o delito do art. 288 do Código Penal (formação de bando ou quadrilha), sem que se configure bis in idem.”[15]  Na doutrina, Rogério Sanches: “A constituição de grupo criminoso já é suficiente para caracterizar o crime do art. 288-A do CP, dispensando a prática de qualquer dos crimes visados pela associação, o qual, ocorrendo, gera o concurso material de delitos. Assim, grupo de extermínio que promove matanças, responde pelos crimes dos arts. 288-A e 121, § 6º, ambos do CP, em concurso material, não se cogitando de bis in idem, pois são delitos autônomos e independentes, protegendo, cada qual, bens jurídicos próprios. O mesmo raciocínio já é aplicado pelo Supremo para não reconhecer bis in idem quando se está diante de quadrilha ou bando armado e roubo majorado pelo emprego de arma”.[16]  Contra, TJSP: “Inadmissível condenar os réus também pelo crime autônomo de formação de quadrilha. Em primeiro lugar porque não veio para estes autos prova segura de que existisse uma associação estável e permanente como sustentou a denúncia, tudo estando a indicar que se tratou de mera coautoria, com divisão de tarefas, nesse único crime. Em segundo lugar porque a quadrilha foi circunstância elementar do sequestro e não poderia  ser levada em consideração, depois disso, como crime autônomo, por se tratar de cristalino e gritante ‘bis in idem’. Não se pode admitir o que fez a sentença, ao qualificar o sequestro pelo tempo de duração, desconsiderando a quadrilha para em seguida condenar os réus por esse crime. O sequestro foi qualificado pela duração e por ter sido praticado por quadrilha armada e por isso a condenação pelo crime autônomo de formação de quadrilha armada não é admissível.”[17]  Nessa esteira, Cezar Roberto Bitencourt: “Na aplicação desta majorante deve-se agir com extremo cuidado para não incorrer em bis in idem, aplicando dupla punição pelo mesmo fato, isto é, condenar o agente pelo art. 288-A e, ao mesmo tempo, condenar pelo homicídio com o acréscimo da majorante aqui prevista. No caso, a condenação deverá ser somente pela prática do crime de constituição de milícia privada (art. 288-A) e pelo de homicídio (simples ou qualificado, dependendo das demais circunstâncias), mas sem esta nova majorante, pois, a nosso juízo, configura um odioso bis in idem. Consideramos um grave e intolerável equívoco, numa repetição da equivocada, mas felizmente já revogada, Súmula 174 do STJ, que considerava arma de brinquedo idônea para tipificar o crime de roubo e, ao mesmo, majorar-lhe a pena pelo 'emprego de arma'. Em síntese, se o agente é condenado pela prática do crime de constituição de milícia privada, ainda que tenham cometido um homicídio, não poderá sofrer a majorante por tal crime ter sido praticado por integrante de milícia privada, pois representará uma dupla punição por um mesmo fundamento. Em outros termos, essa majorante somente pode ser aplicada se o autor do homicídio for reconhecido no julgamento do homicídio como suposto integrante de milícia privada, mas que não tenha sido condenado por esse crime. Por outro lado, não justifica interpretação em sentido contrário, a invocação de orientação equivocada do Supremo Tribunal Federal, que não está reconhecendo bis in idem quando se está diante de quadrilha ou bando armado e roubo majorado pelo emprego de arma. Aquele princípio constitucional de proibição do excesso aplicável ao Parlamento também vige para a Suprema Corte, que não pode ignorar suas próprias limitações constitucionais. O fato de ter a última palavra sobre a aplicação e interpretação de nosso ordenamento jurídico – e se autoautorizar a errar por último – não legitima os condenáveis excessos ignorando o texto constitucional que deve proteger.”[18] 


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[1] Nesse sentido já se pronunciou a profª. Cristiane Dupret: “Em conclusão, nos parece inviável que se tipifique a formação de milícia sem que a lei traga um conceito para tal grupo ou organização, sob pena de cairmos na mesma problemática da Lei 9.034/95, ao dispor sobre Organização Criminosa, em que já tínhamos entendimento do STF acerca da impossibilidade de se considerar tal conceito à margem de definição na legislação brasileira, de forma que não se pudesse deixar ao intérprete tal definição, em que pese à existência de previsão na Convenção da Palermo. A mesma linha de pensamento foi adotada na interpretação do artigo 20 da Lei de Segurança Nacional (Lei 7.170/83), para se aferir o conceito de ‘Atos de Terrorismo’. Para que se respeite o princípio da legalidade, torna-se essencial uma previsão que seja clara e precisa, ao que a Lei 12.720 passou ao largo. O princípio nullum crimem, nulla poena sine lege se desdobra em quatro subprincípios, que irão elevar ao máximo a função de garantia do princípio da legalidade. Dentre eles, a exigência da estrita legalidade (Lege Certa). Lege certa não permite as leis penais indeterminadas, com conceituações vagas e imprecisas. Não basta a lei penal prever a conduta, deve ela prever de forma clara e precisa. Se assim não fosse, a função de garantia do princípio da legalidade estaria fortemente comprometida” (in , acesso em 14/11/12).
[2] BITENCOURT, Cezar Roberto. Constituição de Milícia Privada. Disponível em , acesso em 14/11/12.
[3] Idem, ibidem.
[4] Idem, ibidem.
[5] SANCHES, Rogério. Comentários a Lei nº 12.720, de 27 de Setembro de 2012. Disponível em http://atualidadesdodireito.com.br/rogeriosanches/2012/09/28/comentarios-a-lei-no-12-720-de-27-de-setembro-de-2012/, acesso em 15.11.12.
[6] CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Com quantas pessoas se faz uma milícia privada, uma organização paramilitar, um grupo de extermínio ou um esquadrão da morte?. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3407, 29 out. 2012 . Disponível em: . Acesso em: 15 nov. 2012.
[7] GRECO, Rogério. Homicídio Praticado por Milícia Privada, sob o Pretexto de Prestação de Serviço de Segurança, ou por Grupo de Extermínio. Disponível em http://atualidadesdodireito.com.br/rogeriogreco/2012/09/29/homicidio-praticado-por-milicia-privada-sob-o-pretexto-de-prestacao-de-servico-de-seguranca-ou-por-grupo-de-exterminio/, acesso em 15/11/12.
[8] Idem, ibidem.
[9] Idem, ibidem.
[10] Op. cit.
[11] ISHIDA, Válter Kenji. O Crime de Constituição de Milícia Privada (art. 288-A do Código Penal) Criado Pela Lei nº 12.720, de 27 de Setembro de 2012. Disponível em http://www.midia.apmp.com.br/arquivos/pdf/artigos/2012_%20crime_constituicao.pdf, acessado em 15/11/12.
[12] BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. cit.
[13] HC 59.305/PR, SEXTA TURMA, Rel. Min. MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, julg. em 05/05/2009.
[14] HC 123.612/SP, QUINTA TURMA, rel. Min. Laurita Vaz, julg. em 07/12/2010.
[15] TRF5 - ACR 4877 PE 2004.83.00.009641-0, Primeira Turma, Rel. Des. Federal Hélio Sílvio Ourem Campos (Substituto), julg. em 26/03/2008.
[16] SANCHES, Rogério. Op. cit.
[17] ACR 1094226370000000 SP, 2ª Câmara de Direito Criminal, rel. Des. Ivan Marques, julg. em 15/12/2008.
[18] BITENCOURT, Cezar Roberto. Homicídio doloso praticado por milícia privada. In . Acesso em 17/11/2012."