quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Dica cinematográfica: Deixe Ela Entrar

Em tempos de vampiros camaradas, envolvidos em romances açucarados, é uma benção poder ver um filme como "Deixe Ela Entrar", do diretor Thomas Alfredson. Vi a versão sueca, que logo foi refilmada nos EUA, o que levou muitos críticos a torcerem o nariz para o remake. Mas há aqueles que também consideram a versão americana muito boa.

Trata-se de um misto de terror com drama, e em ambas as linhas o filme se desenvolve bem. Vemos, na tela, a história de Oskar, um pré-adolescente vítima de bullying na escola, que inicia amizade (logo transformada em romance) com a vizinha recém-chegada Eli, posteriormente revelada como uma vampira de doze anos de idade (ou, como diz a personagem, uma vampira que há muito tempo tem doze anos). Entretanto, ao contrário da tendência atual, Eli não deixa de satisfazer sua sede de sangue, tampouco reserva seus ataques a animais ou a pessoas de caráter duvidoso. Mesmo assim, é impossível não torcer para ela e para Oskar, confrontados com a solidão e com a exclusão social. E, ao menos na versão sueca, fica a dúvida: será Eli, na verdade, um menino vítima de mutilação e abusos sexuais, antes de se tornar vampiro?

Um exemplo de roteiro bem construído e de direção segura.

Abraços a todos.

A descabida exigência de registro policial do crime de estupro para a realização do aborto sentimental

Entende-se por aborto sentimental (ou humanitário) aquele em que a gravidez é resultante de estupro, permitindo a intervenção cirúrgica para a preservação da higidez psicológica da gestante. Nestes casos, uma vez colhida a manifestação de vontade da gestante ou, se impossível o pronunciamento desta, de seus representantes legais, o médico (e apenas ele) extraordinariamente pode interromper a gravidez, exterminando o produto da concepção. No entanto, será que o médico deveria requisitar documetação "comprobatória" do estupro para realizar a cirurgia? Entendo que não e passo a expor os motivos:


  • Não existe documentação capaz de provar um estupro, senão a sentença condenatória transitada em julgado. Impossível esperar sua prolação para a realização do aborto.
  • O registro de ocorrência (ou boletim de ocorrência, denominação mais comum) é meramente a documentação de uma notícia-crime formulada em sede policial. Ou seja, não é prova de verossimilhança da alegação. Se a gestante narra na Delegacia um estupro, o policial obrigatoriamente vai consignar tal versão no registro, sem qualquer análise prévia sobre a pertinência da narrativa.
  • Ademais, a gestante NÃO PODE SER COMPELIDA a registrar o estupro para fim de aborto. Isso porque o estupro é crime de ação pública condicionada. Isto é, confere-se à gestante o DIRETO de optar pela conveniência da investigação e da futura ação penal, seja para preservá-la em sua intimidade, seja para (novamente) salvaguardar sua saúde psicológica. Obrigá-la a optar entre o aborto ou o registro do crime significa tolher o exercício do direito, expondo-a desnecessariamente.
  • Exames periciais, de igual forma, não são prova conclusiva de estupro. É possível um estupro que não deixe marcas, ou o desaparecimento destas (até porque a gravidez não é descoberta imediatamente, propiciando sejam apagados naturalmente os vestígios). Sinais de violência, ao revés, também não são prova conclusiva de crime sexual.


Portanto, penso que a única exigência para o aborto deveria ser a convicção motivada do médico. Em caso de logro encetado pela paciente, incidiria o médico em erro determinado por terceiro, excluindo-se sua responsabilização penal, mas permitindo a da gestante.


Abraços a todos.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Breve análise sobre a receptação culposa frente ao princípio da proporcionalidade

Inserta no § 3º, a receptação culposa trata da aquisição ou do recebimento de coisa que, por sua natureza ou em virtude da desproporção entre o valor e o preço, ou pela condição de quem a oferece, deve presumir-se obtida por meio criminoso. O agente, aqui, não conhece a origem ilícita da coisa, tampouco assume o risco de adquirir ou receber produto de crime. Simplesmente age com falta de cuidado objetivo, não presumindo aquilo que é presumível.

Os verbos tipificados no núcleo do tipo são adquirir e receber, também previstos no tipo fundamental doloso. Adquirir significa a obtenção onerosa ou gratuita do domínio da coisa (por exemplo, a compra de um aparelho de som automotivo, produto de furto ou a dação em pagamento de dinheiro roubado, aceita pelo receptador; ou o recebimento em doação de títulos de crédito que são objeto de extorsão). Não se exclui o caso em que a coisa vai parar em poder do agente por sucessão causa mortis, sabendo o herdeiro de sua origem ilícita. Receber é acolher a coisa como possuidor, não ensejando transferência de domínio, como no recebimento em depósito, ou em garantia pignoratícia. A ocultação foi afastada do da norma porque, obviamente, não pode ser praticada culposamente. Os verbos transportar e conduzir também não foram contemplados.

A presunção é informada pela natureza da coisa, pelo preço desproporcional ou pela peculiar condição de quem a oferece. No primeiro caso, tem-se a dúvida residindo na essência do objeto, como uma jóia que é vendida com a gravação do nome de seu proprietário original. A segunda hipótese é revelada pelo preço vil. Já nos detivemos na investigação de um caso em que o agente comprara um telefone celular moderno pelo preço de uma versão popular, sendo descoberta a sua origem em um furto. A desproporção entre preço e valor é fundada somente em regras econômicas, afastado o valor sentimental ou qualquer outro que não possa ser objetivamente considerado pelo adquirente ou recebedor. É evidente que, se o agente desconhece o valor de mercado da coisa, em erro de tipo invencível, será atípica a conduta. A condição de quem oferece a coisa é o último indício de culpa, tratando-se da improbabilidade daquela pessoa oferecer tal bem em um negócio lícito, como no caso do mendigo que oferece um aparelho de som automotivo a alguém, ou em que é vendido um relógio de ouro por camelô. O crime é material, dependendo da tradição da coisa para alcançar a consumação. Em se tratando de conduta culposa, não é admissível a forma tentada.

O objetivo deste artigo, contudo, é a verificação da compatibilidade vertical na norma em comento para com a Constituição Federal. Remando contra a maré da doutrina majoritária e modificando a nossa própria orientação anterior, entendemos que previsão da receptação culposa não se sustenta em uma análise sistemática do dispositivo. Vejamos: o artigo 180, caput, contempla apenas a conduta criminosa praticada com dolo direto, ou seja, o receptador sabe estar realizando o ato sobre um produto de crime; a receptação qualificada abrange o dolo eventual, além do dolo direto, mas restringe sua aplicação aos casos de crime praticado em atividade comercial ou industrial; a receptação culposa, ao seu turno, somente trata da falta de cuidado objetivo do agente, que deveria presumir ter em suas mãos o produto de um crime, afastada a restrição da atividade comercial ou industrial, bem como qualquer espécie de conduta dolosa. Como fica a situação, assim, da pessoa que, assumindo o risco de ter como objeto de sua conduta o produto de um crime, o faz fora da atividade comercial ou industrial? Explicando melhor, como pode ser tipificada a conduta da pessoa que recepta um bem, movida pelo dolo eventual, sem estar abrangida pela qualidade de comerciante, mesmo que irregular, ou industrial? Não é possível a inserção da conduta no caput, que exige o dolo direto; tampouco no § 1º, que necessita da prática comercial ou industrial; muito menos no § 3º, que pressupõe conduta culposa. Estamos diante, portanto, de conduta atípica. Ou seja, não há punição para aquele que, com dolo eventual, recepta o bem. Entretanto, há sanção para a conduta culposa, o que gera uma iniquidade: como punir criminalmente a conduta menos grave (culpa) e não a mais grave (dolo eventual). É diante desta perplexidade que consideramos inaplicável o § 3º do artigo 180 do CP. Nessa hipótese, há obvia violação ao princípio da proporcionalidade, eivando de vício insanável o dispositivo. Além do que, na prática, a assunção do risco e a conduta culposa são separados por uma tênue fronteira, de difícil delimitação, razão pela qual entendemos que, até pela escassa reprovabilidade, o ideal seria a extirpação da receptação culposa do Código Penal.

Abraços a todos.