segunda-feira, 7 de março de 2011

Decisão do STF sobre a competência para julgamento de crime militar em sentido impróprio

Belíssima decisão, de lavra do Min. Celso de Mello. Vale a leitura:

EMENTA: CRIME MILITAR EM SENTIDO IMPRÓPRIO: FALSIFICAÇÃO/USO DE CADERNETA DE INSCRIÇÃO E REGISTRO – CIR, EMITIDA PELA MARINHA DO BRASIL. LICENÇA DE NATUREZA CIVIL. COMPORTAMENTO QUE, EM TESE, AFETA SERVIÇO DA UNIÃO, APTO _A SUBSUMIR-SE À ESFERA DE COMPETÊNCIA PENAL DA JUSTIÇA FEDERAL COMUM (CF, ART. 109, IV). IMPUTAÇÃO PENAL DEDUZIDA, NO CASO, PERANTE A JUSTIÇA MILITAR DA UNIÃO, CONTRA CIVIL. CARÁTER ANÔMALO DA JURISDIÇÃO PENAL MILITAR SOBRE CIVIS, EM TEMPO DE PAZ. _A REGULAÇÃO DO TEMA PERTINENTE À JUSTIÇA MILITAR NO PLANO DO DIREITO COMPARADO. TENDÊNCIA QUE SE REGISTRA, MODERNAMENTE, EM SISTEMAS NORMATIVOS ESTRANGEIROS, NO SENTIDO DA EXTINÇÃO (PURA E SIMPLES) DE TRIBUNAIS MILITARES EM TEMPO DE PAZ OU, ENTÃO, DA EXCLUSÃO DE CIVIS DA JURISDIÇÃO PENAL MILITAR: PORTUGAL (CONSTITUIÇÃO DE 1976, ART. 213, QUARTA REVISÃO CONSTITUCIONAL DE 1997), ARGENTINA (LEY FEDERAL Nº 26.394/2008), COLÔMBIA (CONSTITUIÇÃO DE 1991, ART. 213), PARAGUAI (CONSTITUIÇÃO DE 1992, ART. 174), MÉXICO (CONSTITUIÇÃO DE 1917, ART. 13) e URUGUAI (CONSTITUIÇÃO DE 1967, ART. 253, c/c LEY 18.650/2010, ARTS. 27 E 28), v.g.. UMA RELEVANTE SENTENÇA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (“CASO PALAMARA IRIBARNE VS. CHILE”, DE 2005): DETERMINAÇÃO PARA QUE A REPÚBLICA DO CHILE, ADEQUANDO A SUA LEGISLAÇÃO INTERNA AOS PADRÕES INTERNACIONAIS SOBRE JURISDIÇÃO PENAL MILITAR, ADOTE MEDIDAS COM O OBJETIVO DE IMPEDIR, QUAISQUER QUE SEJAM AS CIRCUNSTÂNCIAS, QUE “um civil seja submetido à jurisdição dos tribunais penais militares (...)” (item nº 269, n. 14, da parte dispositiva, “Puntos Resolutivos”). O CASO “EX PARTE MILLIGAN” (1866): IMPORTANTE “LANDMARK RULING” DA SUPREMA CORTE DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. DECISÃO DO SUPERIOR TRIBUNAL MILITAR QUE SE PÕE EM CONFLITO COM O POSTULADO DO JUIZ NATURAL. O ALTO SIGNIFICADO E O ALCANCE DESSE PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL. A POSSIBILIDADE DE SUA ANÁLISE SOB DUPLA PERSPECTIVA: “ex parte subjecti” e “ex parte principis”. PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA.


DECISÃO: A presente impetração insurge-se contra decisão, que, emanada do E. Superior Tribunal Militar, encontra-se consubstanciada em acórdão assim ementado:

“‘HABEAS CORPUS’. USO DE DOCUMENTO FALSO. CADERNETA DE INSCRIÇÃO E REGISTRO - CIR. SERVIÇO DE POLÍCIA MARÍTIMA.COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA MILITAR.
Civis acusados de utilizar documento não autêntico, cuja expedição do original incumbe à Capitania dos Portos e demais órgãos que integram a estrutura organizacional da Marinha do Brasil.
Revestida de fé pública, eventual adulteração nos dados originais de Caderneta de Inscrição e Registro repercute negativamente na credibilidade das instituições militares e atenta contra a ordem administrativa militar, do que decorre a configuração do crime de natureza militar.
Competência da Justiça Militar da União.
Ordem denegada.
Decisão unânime.” (grifei)

As razões constantes da presente impetração parecem justificar – ao menos em juízo de estrita delibação – a densa plausibilidade jurídica da pretensão deduzida nesta sede processual, especialmente se se considerar julgamento, por mim proferido na colenda Segunda Turma, em que este Tribunal, examinando a suposta prática, por civil, em tempo de paz, de crime militar, reconheceu não configurado o delito castrense em acórdão que possui a seguinte ementa:

“‘HABEAS CORPUS’ - CRIME DE LESÕES CORPORAIS CULPOSAS CONTRA MILITAR EM MANOBRA - INOCORRÊNCIA DE CRIME MILITAR - COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM - POSTULADO DO JUIZ NATURAL – (...) - PEDIDO DEFERIDO.
EXCEPCIONALIDADE DA COMPETÊNCIA PENAL DA JUSTIÇA MILITAR DA UNIÃO, EM TEMPO DE PAZ, TRATANDO-SE DE RÉU CIVIL.

- Não se tem por configurada a competência penal da Justiça Militar da União, em tempo de paz, tratando-se de réus civis, se a ação delituosa, a eles atribuída, não afetar, ainda que potencialmente, a integridade, a dignidade, o funcionamento e a respeitabilidade das instituições militares, que constituem, em essência, nos delitos castrenses, os bens jurídicos penalmente tutelados.
- O caráter anômalo da jurisdição penal castrense sobre civis, notadamente em tempo de paz. _O caso ‘Ex Parte Milligan’ (1866): um precedente histórico valioso.
O POSTULADO DO JUIZ NATURAL REPRESENTA GARANTIA CONSTITUCIONAL INDISPONÍVEL, ASSEGURADA _A QUALQUER RÉU, EM SEDE DE PERSECUÇÃO PENAL, MESMO QUANDO INSTAURADA PERANTE A JUSTIÇA MILITAR DA UNIÃO.
- O princípio da naturalidade do juízo representa uma das mais importantes matrizes político-ideológicas que conformam a própria atividade legislativa do Estado e condicionam o desempenho, pelo Poder Público, das funçõesde caráter penal-persecutório,notadamente quando exercidas em sede judicial.
_O postulado do juiz natural, em sua projeção político-jurídica, reveste-se de dupla função instrumental, pois, enquanto garantia indisponível, tem, por titular, qualquer pessoa exposta, em juízo criminal, à ação persecutória do Estado, e, enquanto limitação insuperável, representa fator de restrição que incide sobre os órgãos do poder estatal incumbidos de promover, judicialmente, a repressão criminal.
- _É irrecusável, em nosso sistema de direito constitucional positivo - considerado o princípio do juiz natural - que ninguém poderá ser privado de sua liberdade senão mediante julgamento pela autoridade judiciária competente. Nenhuma pessoa, em conseqüência, poderá ser subtraída ao seu juiz natural. A nova Constituição do Brasil, ao proclamar as liberdades públicas - que representam limitações expressivas aos poderes do Estado - consagrou, de modo explícito, o postulado fundamental do juiz natural. O art. 5º, LIII, da Carta Política prescreve que ‘ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente’. (...).”
(HC 81.963/RS, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

Cumpre enfatizar, desde logo, que a Justiça Militar da União - cujos órgãos (Conselhos de Justiça e o E. Superior Tribunal Militar) não se identificam nem se subsumem à noção de tribunais de exceção ou de juízos “ad hoc” (ALEXANDRE DE MORAES, “Direito Constitucional”, p. 88/89, item n. 21.1, 25ª ed., 2010, Atlas; UADI LAMMÊGO BULOS, “Curso de Direito Constitucional”, p. 669, item n. 47.3, “c”, 5ª ed., 2010, Saraiva; SYLVIO MOTTA e GUSTAVO BARCHET, “Curso de Direito Constitucional”, p. 215, item n. 2.29, 2007, Elsevier; PEDRO LENZA, “Direito Constitucional Esquematizado”, p. 777/778, item n. 14.9.22, 14ª ed., 2010, Saraiva, v.g.) – dispõe de competência penal para processar e julgar civis, mesmo em tempo de paz, por suposta prática de crime militar tipificado em lei (KILDARE GONÇALVES CARVALHO, “Direito Constitucional”, p. 1076, item n. 14, 13ª ed., 2007, Del Rey, v.g.), eis que a Constituição da República, ao remeter ao plano da legislação ordinária a definição dos delitos castrenses, viabilizou a qualificação de qualquer civil, em algumas situações específicas, como possível sujeito ativo dessa especial modalidade de infração penal, como claramente resulta da leitura do próprio Código Penal Militar, considerada a regra inscrita em seu art. 9º, em contexto que permite reconhecer que, no ordenamento positivo brasileiro, a conceituação de crime militar rege-se pelo critério objetivo, estabelecido “ratione legis”, segundo se extrai do magistério da doutrina (JORGE ALBERTO ROMEIRO, “Curso de Direito Penal Militar – Parte Geral”, p. 66, item n. 48, 1994, Saraiva; CÉLIO LOBÃO, “Direito Penal Militar”, p. 50/53, item n. 8, 1990, Brasília Jurídica; JOSÉ DA SILVA LOUREIRO NETO, “Direito Penal Militar”, p. 17/28, item n. 2.2, 5ª ed., 2010, Atlas, v.g.).

Isso significa, portanto, que a Justiça Militar da União possui, excepcionalmente, em tema de delitos castrenses, jurisdição penal sobre civis, quer em tempo de paz, quer em tempo de guerra.
A tentativa de o Poder Público pretender sujeitar, arbitrariamente, a Tribunais castrenses, em tempo de paz, réus civis, fazendo instaurar, contra eles, perante órgãos da Justiça Militar da União, fora das estritas hipóteses legais, procedimentos de persecução penal, por suposta prática de crime militar, representa clara violação ao princípio constitucional do juiz natural (CF, art. 5º, LIII).
Não se pode deixar de acentuar, bem por isso, o caráter anômalo da submissão de civis, notadamente em tempo de paz, à jurisdição dos Tribunais e órgãos integrantes da Justiça Militar da União, por suposta prática de crime militar, especialmente se se tiver em consideração que tal situação - porque revestida de excepcionalidade – só se legitima se e quando configuradas, quanto a réus civis, as hipóteses delineadas em sede legal e cujo reconhecimento tem merecido, do Supremo Tribunal Federal, estrita interpretação.
É importante observar que, no plano do direito comparado, registra-se, modernamente, em diversos sistemas normativos vigentes em Estados impregnados de perfil democrático, clara tendência, quer no sentido da extinção (pura e simples) de tribunais militares em tempo de paz, permitindo-lhes, no entanto, a existência, embora circunstancialmente, apenas quando deflagrado estado de guerra, quer, ainda, no sentido da exclusão de civis da jurisdição penal militar, valendo destacar, sob tais aspectos, o ordenamento positivo de alguns países, como o de Portugal (Constituição de 1976, art. 213, Quarta Revisão Constitucional de 1997), o da Argentina (Ley Federal nº 26.394/2008), o da Colômbia (Constituição de 1991, art. 213), o do Paraguai (Constituição de 1992, art. 174), o do México (Constituição de 1917, art. 13) e o do Uruguai (Constituição de 1967, art. 253, c/c Ley 18.650/2010, arts. 27 e 28).
De outro lado, cabe registrar importantíssima decisão proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 22/11/2005, no julgamento do “Caso Palamara Iribarne vs. Chile”, em que se determinou, à República do Chile, dentre outras providencias, que ajustasse, em prazo razoável, o seu ordenamento interno aos padrões internacionais sobre jurisdição penal militar, de forma tal que, se se considerasse necessária a existência (ou subsistência) de uma jurisdição penal militar, fosse esta limitada, unicamente, ao conhecimento de delitos funcionais cometidos por militares em serviço ativo.
Mais do que isso, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, na Sentença proferida no “Caso Palamara Iribarne vs. Chile”, determinou que a República do Chile estabelecesse, em sua legislação interna, limites à competência material e pessoal dos Tribunais militares, em ordem a que, “en ninguna circunstancia un civil se vea sometido a la jurisdicción de los tribunales penales militares (...)” (grifei).
O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, tem entendido, em casos idênticos ao ora em análise, que não se tem por configurada a competência da Justiça Militar da União, em tempo de paz, tratando-se de réus civis, se a ação eventualmente delituosa, por eles praticada, não afetar, de modo real ou potencial, a integridade, a dignidade, o funcionamento e a respeitabilidade das instituições militares que constituem, em essência, os bens jurídicos penalmente tutelados.
Mostra-se grave, por isso mesmo, a instauração, em tempo de paz, de inquérito policial militar (IPM) contra civil, com o objetivo de submetê-lo, fora dos casos autorizados em lei, a julgamento perante a Justiça Militar da União!
Cabe rememorar, por oportuno, histórica decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos da América (verdadeira “landmark ruling”), proferida no julgamento, em 1866, do caso “Ex Parte Milligan”(71 U.S. 1).
A Suprema Corte dos Estados Unidos da América, nesse importante precedente, ao examinar decisão condenatória motivada por fatos ocorridos no curso da Guerra Civil americana, veio a invalidar tal condenação, que impusera a pena de morte (enforcamento), por traição, a um acusado civil, Lambden P. Milligan, por entender que, mesmo que se tratasse de um crime praticado nas circunstâncias de tempo e de lugar em que ocorrera, ainda assim um civil não poderia ser julgado por uma Corte militar (“martial court”), desde que os órgãos judiciários da Justiça comum estivessem funcionando regularmente.
Nesse julgamento, enfatizou-se, por unânime votação, que a Constituição não se suspende em períodos de crise ou de emergência nacional, pois ela representa, enquanto estatuto do poder e instrumento das liberdades, a lei suprema que a todos se aplica, tanto a governantes, como a governados, quer em tempo de paz, quer em tempo de guerra.
Concluiu-se, por tal razão, naquela decisão, que o julgamento de civis, por tribunais militares (cortes marciais), era inadmissível nos locais em que houvesse tribunais civis em pleno e regular funcionamento:

“On the 10th day of May, 1865, Lambden P. Milligan presented a petition to the Circuit Court of the United States for the District of Indiana, to be discharged from an alleged unlawful imprisonment...
Milligan insists that said military commission had no jurisdiction to try him upon the charges preferred, or upon any charges whatever; because he was a citizen of the United States and the State of Indiana, and had not been, since the commencement of the late Rebellion, a resident of any of the States whose citizens were arrayed against the government, and that the right of trial by jury was guaranteed to him by the Constitution of the United States...
The importance of the main question presented by this record cannot be overstated; for it involves the very framework of the government and the fundamental principles of American liberty.
.......................................................
The controlling question in the case is this: Upon the facts stated in Milligan’s petition, and the exhibits filed, had the military commission mentioned in it jurisdiction, legally, to try and sentence him? Milligan, not a resident of one of the rebellious states, or a prisoner of war, but a citizen of Indiana for twenty years past and never in the military or naval service, is, while at his home, arrested by the military power of the United States, imprisoned, and, on certain criminal charges preferred against him, tried, convicted, and sentenced to be hanged by a military commission, organized under the direction of the military commander of the military district of Indiana. Had this tribunal the legal power and authority to try and punish this man?
No graver question was ever considered by this court, nor one which more nearly concerns the rights of the whole people; for it is the birthright of every American citizen when charged with crime, to be tried and punished according to law. The power of punishment is, alone through the means which the laws have provided for that purpose, and if they are ineffectual, there is an immunity from punishment, no matter how great an offender the individual may be, or how much his crimes may have shocked the sense of justice of the country, or endangered its safety. By the protection of the law human rights are secured; withdraw that protection, and they are at the mercy of wicked rulers, or the clamor of an excited people. If there was law to justify this military trial, it is not our province to interfere; if there was not, it is our duty to declare the nullity of the whole proceedings. The decision of this question does not depend on argument or judicial precedents, numerous and highly illustrative as they are. These precedents inform us of the extent of the struggle to preserve liberty and to relieve those in civil life from military trials. The founders of our government were familiar with the history of that struggle; and secured in a written constitution every right which the people had wrested from power during a contest of ages. By that Constitution and the laws authorized by it this question must be determined. The provisions of that instrument on the administration of criminal justice are too plain and direct, to leave room for misconstruction or doubt of their true meaning. Those applicable to this case are found in that clause of the original Constitution which says, ‘That the trial of all crimes, except in case of impeachment, shall be by jury’; and in the fourth, fifth, and sixth articles of the amendments...
Have any of the rights guaranteed by the Constitution been violated in the case of Milligan? and if so, what are they?
.......................................................
But it is said that the jurisdiction is complete under the ‘laws and usages of war.’
.......................................................
It is claimed that martial law covers with its broad mantle the proceedings of this military commission. The proposition is this: that in a time of war the commander of an armed force (if in his opinion the exigencies of the country demand it, and of which he is to judge), has the power, within the lines of his military district, to suspend all civil rights and their remedies, and subject citizens as well as soldiers to the rule of his will; and in the exercise of his lawful authority cannot be restrained, except by his superior officer or the President of the United States.
If this position is sound to the extent claimed, then when war exists, foreign or domestic, and the country is subdivided into military departments for mere convenience, the commander of one of them can, if he chooses, within his limits, on the plea of necessity, with the approval of the Executive, substitute military force for and to the exclusion of the laws, and punish all persons, as he thinks right and proper, without fixed or certain rules.
The statement of this proposition shows its importance; for, if true, republican government is a failure, and there is an end of liberty regulated by law. Martial law established on such a basis, destroys every guarantee of the Constitution, and effectually renders the ‘military independent of and superior to the civil power’ - the attempt to do which by the King of Great Britain was deemed by our fathers such an offence, that they assigned it to the world as one of the causes which impelled them to declare their independence. Civil liberty and this kind of martial law cannot endure together; the antagonism is irreconcilable; and, in the conflict, one or the other must perish.
.......................................................
It follows, from what has been said on this subject, that there are occasions when martial rule can be properly applied. If, in foreign invasion or civil war, the courts are actually closed, and it is impossible to administer criminal justice according to law, then, on the theatre of active military operations, where war really prevails, there is a necessity to furnish a substitute for the civil authority, thus overthrown, to preserve the safety of the army and society; and as no power is left but the military, it is allowed to govern by martial rule until the laws can have their free course. As necessity creates the rule, so it limits its duration; for, if this government is continued after the courts are reinstated, it is a gross usurpation of power. Martial rule can never exist where the courts are open, and in the proper and unobstructed exercise of their jurisdiction. It is also confined to the locality of actual war.” (grifei)

Todas essas considerações revelam-se de indiscutível importância em face do caráter de fundamentalidade de que se reveste, em nosso sistema jurídico, o princípio do juiz natural.
Com efeito, o princípio da naturalidade do juízo representa uma das mais importantes matrizes político-ideológicas que conformam a própria atividade legislativa do Estado e que condicionam o desempenho, por parte do Poder Público, das funções de caráter penal-persecutório, notadamente quando exercidas em sede judicial.
Daí a advertência de JOSÉ FREDERICO MARQUES (“O Processo Penal na Atualidade”, “in” “Processo Penal e Constituição Federal”, p. 19, item n. 7, 1993, Ed. Acadêmica/Apamagis, São Paulo), no sentido de que, ao rol de postulados básicos, deve acrescer-se “aquele do Juiz natural, contido no item nº LIII do art. 5º, que declara que ‘ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente’. É que autoridade competente só será aquela que a Constituição tiver previsto, explícita ou implicitamente, pois, se assim não fosse, a lei poderia burlar as garantias derivadas do princípio do Juiz independente e imparcial, criando outros órgãos para o processo e julgamento de determinadas infrações” (grifei).
A essencialidade do princípio do juiz natural impõe, ao Estado, o dever de respeitar essa garantia básica que predetermina, em abstrato, os órgãos judiciários investidos de competência funcional para a apreciação dos litígios penais.
Na realidade, o princípio do juiz natural reveste-se, em sua projeção político-jurídica, de dupla função instrumental, pois, enquanto garantia indisponível, tem, por titular, qualquer pessoa exposta, em juízo criminal, à ação persecutória do Estado, e, enquanto limitação insuperável, incide sobre os órgãos do poder incumbidos de promover, judicialmente, a repressão criminal.
Vê-se, desse modo, que o postulado da naturalidade do juízo, ao qualificar-se como prerrogativa individual ex parte subjecti,tem, por destinatário específico, o réu, erigindo-se, em conseqüência, como direito público subjetivo inteiramente oponível ao próprio Estado. Esse mesmo princípio, contudo, se analisado em perspectiva diversa, ex parte principis, atua como fator de inquestionável restrição ao poder de persecução penal, submetendo, o Estado, a múltiplas limitações inibitórias de suas prerrogativas institucionais.
Isso significa que o postulado do juiz natural deriva de cláusula constitucional tipicamente bifronte, pois, dirigindo-se a dois destinatários distintos, ora representa um direito do réu (eficácia positiva da garantia constitucional), ora traduz uma imposição ao Estado (eficácia negativa dessa mesma garantia constitucional).
O princípio da naturalidade do juízo, portanto, encerrando uma garantia constitucional, limita, de um lado, os poderes do Estado (impossibilitado, assim, de instituir juízos “ad hoc” ou de criar tribunais de exceção) e assegura ao acusado, de outro, o direito ao processo perante autoridade competente, abstratamente designada na forma de lei anterior (vedados, em conseqüência, os juízos “ex post facto”).
É por essa razão que ADA PELLEGRINI GRINOVER - após destacar a importância histórica e político-jurídica do princípio do juiz natural - acentua, com apoio no magistério de JORGE FIGUEIREDO DIAS (“Direito Processual Penal”, vol. 1/322-323, 1974, Coimbra), que esse postulado constitucional acha-se tutelado por garantias irredutíveis que se desdobram, “na verdade, em três conceitos: só são órgãos jurisdicionais os instituídos pela Constituição; ninguém pode ser julgado por órgão constituído após a ocorrência do fato; entre os juízes pré-constituídos vigora uma ordem taxativa de competências, que exclui qualquer alternativa deferida à discricionariedade de quem quer que seja” (“O Processo em Sua Unidade – II”, p. 39, item n. 6, 1984, Forense - grifei).
O fato irrecusável, em nosso sistema de direito constitucional positivo - considerado o princípio do juiz natural - é que ninguém poderá ser privado de sua liberdade senão mediante julgamento pela autoridade judicial competente. Nenhuma pessoa, em conseqüência, poderá ser subtraída ao seu juiz natural. A nova Constituição do Brasil, ao proclamar as liberdades públicas - que representam limitações expressivas aos poderes do Estado consagrou, agora de modo explícito, o postulado fundamental do juiz natural. O art. 5º, LIII, da Carta Política prescreve que “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”.
A importância político-jurídica desse princípio essencial - que traduz uma das projeções concretizadoras da cláusula do “due process of law” - foi acentuada pelo autorizado magistério de eminentes autores, tais como ADA PELLEGRINI GRINOVER (“O Processo em sua unidade – II”, p. 3/4, 1984, Forense), GIUSEPPE SABATINI (“Principii Costituzionali del Processo Penale”, p. 93/131, 1976, Napoli), TAORMINA (“Giudice naturale e processo penale”, p. 16, 1972, Roma), JOSÉ CIRILO DE VARGAS (“Processo Penal e Direitos Fundamentais”, p. 223/232, 1992, Del Rey Editora), MARCELO FORTES BARBOSA (“Garantias Constitucionais de Direito Penal e de Processo Penal na Constituição de 1988”, p. 80/81, 1993, Malheiros) e ROGÉRIO LAURIA TUCCI e JOSÉ ROGÉRIO CRUZ E TUCCI (“Constituição de 1988 e Processo”, p. 30/32, item n. 10, 1989, Saraiva).
O exame da impetração revela que os ora pacientes são civis, havendo sido denunciados, pelo Ministério Público Militar, como autores de suposta prática delituosa, de natureza castrense, tipificada no art. 315 c/c o art. 9º, inciso III, “a”, ambos do Código Penal Militar e que teria sido alegadamente cometida em ambiente estranho à Administração das Forças Armadas.
Sustenta-se que o delito atribuído aos ora pacientes teria afetado “a execução de serviços de polícia marítima”, cuja natureza, por envolver típica atividade de segurança pública, afastaria o ilícito penal em questão da esfera de competência penal da Justiça Militar da União, fazendo instaurar, ao contrário, por efeito do que dispõe o art. 109, inciso IV, da Constituição, a competência penal da Justiça Federal comum.
Cumpre destacar, por relevante, o magistério jurisprudencial desta Suprema Corte, que teve a oportunidade de advertir – em precedentes de ambas as Turmas -, em situações idênticas à ora examinada, que o delito de falsificação de documento ou de uso de documento falso, como a Caderneta de Inscrição e Registro (CIR), emitida pela Capitania dos Portos e demais órgãos que integram a estrutura administrativa da Marinha do Brasil, não configura hipótese tipificadora de crime militar, ainda mais se alegadamente praticado por civil (HC 96.083/RJ, Rel. Min. ELLEN GRACIE – HC 96.561/PA, Rel. Min. CEZAR PELUSO – HC 103.318/PA, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA):
“COMPETÊNCIA - JUSTIÇA MILITAR VERSUS JUSTIÇA FEDERAL ‘STRICTO SENSU’ - CRIME DE FALSO - CARTEIRA DE HABILITAÇÃO NAVAL DE NATUREZA CIVIL. A competência para julgar processo penal a envolver a falsificação de carteira de habilitação naval de natureza civil é da Justiça Federal, sendo titular da ação o Ministério Público Federal.”
(HC 90.451/SP, Rel. Min. MARCO AURÉLIO - grifei)

“‘HABEAS CORPUS’. COMPETÊNCIA. JUSTIÇA MILITAR. CRIME MILITAR NÃO CARACTERIZADO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM FEDERAL. USO DE DOCUMENTO FALSO. CADERNETA DE INSTRUÇÃO E REGISTRO (CIR). LICENÇA DE NATUREZA CIVIL. PRECEDENTES. ORDEM CONCEDIDA.
1. Ao contrário do entendimento do Superior Tribunal Militar, é excepcional a competência da Justiça castrense para o julgamento de civis, em tempo de paz. A tipificação da conduta de agente civil como crime militar está a depender do ‘intuito de atingir, de qualquer modo, a Força, no sentido de impedir, frustrar, fazer malograr, desmoralizar ou ofender o militar ou o evento ou situação em que este esteja empenhado’ (CC 7.040, da relatoria do ministro Carlos Velloso).
2. O cometimento do delito militar por agente civil em tempo de paz se dá em caráter excepcional. Tal cometimento se traduz em ofensa àqueles bens jurídicos tipicamente associados à função de natureza militar: defesa da Pátria, garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem (art. 142 da Constituição Federal).
3. No caso dos autos, a conduta supostamente protagonizada pelos pacientes configura, em tese, infração comum, em detrimento de bens, serviços ou interesses da União. A atrair, assim, a incidência do inciso IV do art. 109 da Carta Magna de 1988.
4. O policiamento naval é tratado pelo inciso III do § 1º do art. 144 da Constituição Republicana como ação de segurança pública, ‘de maneira que é um tipo de atividade que se abre para múltipla cobertura pública, vale dizer, a Polícia Federal também tem essa expressa competência: exercer as funções de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras’. Precedentes HC 90.451, da relatoria do ministro Marco Aurélio; HC 96.561, da relatoria do ministro Cezar Peluso.
5. Ordem concedida para determinar a remessa do processo-crime à Justiça comum federal, anulando-se os atos processuais eventualmente praticados, inclusive a denúncia.”
(HC 104.617/BA, Rel. Min. AYRES BRITTO - grifei)

“‘HABEAS CORPUS’. CONSTITUCIONAL. PENAL MILITAR. CRIMES DE FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO OU USO DE DOCUMENTO FALSO (ARTS. 311 E 315 DO CPM). CADERNETA DE INSCRIÇÃO E REGISTRO (CIR) OU HABILITAÇÃO DE ARRAIS-AMADOR.
COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. ORDEM CONCEDIDA.
I – Em diversas oportunidades, esta Suprema Corte afirmou o entendimento de que é da Justiça Federal a competência para processar e julgar civil denunciado pelos crimes de falsificação de documento ou uso de documento falso (arts. 311 e 315, respectivamente, do CPM), quando se tratar de falsificação da Caderneta de Inscrição e Registro (CIR) ou Habilitação de Arrais-Amador, ambas expedidas pela Marinha do Brasil, por aplicação dos arts. 21, XXII, 109, IV, e 144, § 1º, III, todos da Constituição da República.
II – ‘Habeas corpus’ concedido para anular o acórdão ora atacado e declarar a incompetência da Justiça Militar para processar e julgar o feito.”
(HC 104.837/SP, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI - grifei)

Desse modo, e considerados os precedentes que o Supremo Tribunal Federal firmou na matéria ora em análise, reconheço configurada, no caso, a absoluta incompetência da Justiça Militar da União, para processar e julgar os ora pacientes, que são civis, a quem se imputou a prática de delito que, evidentemente, não se qualifica como crime de natureza militar.
A densa plausibilidade jurídica da postulação ora deduzida em favor dos pacientes ainda mais se acentua se se tiver presente que o acórdão emanado do E. Superior Tribunal Militar põe-se em relação de antagonismo com diretriz jurisprudencial prevalecente nesta Suprema Corte, o que provoca situação de conflito com o postulado da naturalidade do juízo.
É que os ora pacientes deixaram de ser submetidos, sem causa legítima, ao seu juiz natural, decorrendo, de tal situação, ofensa evidente à cláusula tutelar que protege, em nosso sistema jurídico, qualquer réu (CF, art. 5º, LIII).
Sendo assim, e tendo presentes as razões expostas, defiro o pedido de medida liminar, em ordem a suspender, cautelarmente, até final julgamento da presente ação de “habeas corpus”, o curso do Processo nº 0000017-96.2008.7.12.0012, instaurado, contra os ora pacientes, perante a Auditoria da 12ª Circunscrição Judiciária Militar.
Comunique-se, com urgência, transmitindo-se cópia da presente decisão ao E. Superior Tribunal Militar (HC 0000083-77.2010.7.00.0000) e à Auditoria da 12ª CJM (Processo nº 0000017­96.2008.7.12.0012).
2. Ouça-se a douta Procuradoria Geral da República.
Publique-se.
Brasília, 16 de novembro de 2010.

Ministro CELSO DE MELLO
Relator

Nenhum comentário:

Postar um comentário