quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Relações institucionais conflituosas: a arrogância não pode prevalecer sobre a harmonia

Recentemente, conversando com um amigo também Delegado, soube de uma situação que, embora seja relativamente corriqueira, ainda me causa espanto. Refiro-me à ameaça de autuação de Autoridades Policiais pelo crime de prevaricação, em caso de descumprimento de requisições do Ministério Público e do Poder Judiciário. Não vou sequer me ater à questão da independência entre os órgãos envolvidos (não há subserviência da Polícia Civil a eles), mas sim à questão técnica: para a existência de prevaricação, se faz necessária a intenção de atender a um sentimento ou interesse pessoal. Não que isso não possa existir. Mas somente a situação concreta pode revelar esse elemento subjetivo especial. Discordâncias sobre a tipicidade de determinada conduta ou outros aspectos da ciência penal não permitem, por conseguinte, perfeita adequação da conduta ao preceituado no art. 319 do CP. No caso em apreço, tudo se torna ainda mais esdrúxulo, por conta de uma ameaça genérica de autuação (algo do tipo "todos os delegados que descumprirem determinada ordem serão presos por prevaricação"), o que, no mínimo, revela descortesia ímpar para com uma instituição bicentenária. Mas não vou me prolongar, até porque a resposta dada por esse amigo ao ofício encaminhado é precisa na análise da controvérsia, merecendo minha integral concordância. Transcrevo-a (nomes foram suprimidos para evitar constrangimentos):

Venho atender à solicitação de informações do Diretor do DGPC no que tange aos fatos narrados em ata de assentada realizada no dia YY de agosto, na Projeção do VIII Juizado Especial da Violência Doméstica e Familiar contra a mulher e Especial Criminal – Estádio Maracanã.

Em síntese, naquele dia fora apresentada pela Polícia Militar a esta Autoridade Policial ocorrência envolvendo o nacional A. F. A., o qual fora detido por policiais militares em razão de posse de aparelho emissor de feixe de luz semelhante a um laser. Consta no registro de ocorrência, lavrado com base nas declarações dos policiais condutores, que o referido indivíduo estaria no meio da torcida do Fluminense apontando aquele feixe de luz para a torcida do São Paulo.

Analisada a conduta do conduzido com base nestes fatos e considerando a enorme distância entre as torcidas adversárias nas arquibancadas do Maracanã, bem como a ausência de potencial nocivo de uma luz projetada sobre outra torcida à tamanha distância, esta Autoridade Policial decidiu - como não poderia deixar de ser - por reconhecer a atipicidade penal da conduta do citado cidadão.

Porém, conhecedor da legislação aplicável a eventos esportivos, especificamente o Estatuto do Torcedor – esta Autoridade lavrou o registro de ocorrência e apreendeu o aparelho em razão da existência de norma legal que classificou como infração ADMINISTRATIVA a posse de aparelhos emissores de feixe de luz.

A verificação desta infração acarreta na proibição de entrada ou retirada do torcedor do estádio.

Diz o citado preceito legal:


CAPÍTULO IV

DA SEGURANÇA DO TORCEDOR PARTÍCIPE DO EVENTO ESPORTIVO

Art. 13. O torcedor tem direito a segurança nos locais onde são realizados os eventos esportivos antes, durante e após a realização das partidas.

Parágrafo único. Será assegurado acessibilidade ao torcedor portador de deficiência ou com mobilidade reduzida.

Art. 13-A. São condições de acesso e permanência do torcedor no recinto esportivo, sem prejuízo de outras condições previstas em lei: (Incluído pela Lei nº 12.299, de 2010).

....

VII - não portar ou utilizar fogos de artifício ou quaisquer outros engenhos pirotécnicos ou produtores de efeitos análogos; (Incluído pela Lei nº 12.299, de 2010).

...

Parágrafo único. O não cumprimento das condições estabelecidas neste artigo implicará a impossibilidade de ingresso do torcedor ao recinto esportivo, ou, se for o caso, o seu afastamento imediato do recinto, sem prejuízo de outras sanções administrativas, civis ou penais eventualmente cabíveis. (Incluído pela Lei nº 12.299, de 2010).

Crê desnecessária neste momento explanação teórica acerca da natureza administrativa do dispositivo legal acima analisado, quando uma simples análise da lei revela que a tal conduta não foi previsto um preceito secundário punitivo, bem como tal norma intencionalmente não foi elencada no Capítulo XI-A (artigos 41-B a 41-G) do atualizado Estatuto do Torcedor.

Prosseguindo, impõe-se destacar que foi o registro de ocorrência desta infração administrativa foi lavrado então sob o correto título de “fato atípico” apenas para viabilizar a apreensão formal do aparelho emissor de luz.

Imediatamente o nacional conduzido pelos policiais militares foi colocado à disposição destes para cumprimento das sanções administrativas previstas no Estatuto do Torcedor, uma vez que a conduta do mesmo era irrelevante à luz do Direito Penal.

Os autos do registro de ocorrência foram então encaminhados ao MP e MM. Juízo que naquele momento compunham o “posto avançado” por mera observância de praxe específica, uma vez que em sede de Delegacia de Polícia Judiciária, qualquer fato registrado e entendido como atípico por quem tem atribuição legal - o Delegado de Polícia – merece arquivamento imediato sem a necessidade de consulta ou “benção” do MP ou de qualquer órgão, quanto mais o Poder Judiciário, inerte por princípio constitucional elevado a garantia de direito fundamental.

Eis que chega a esta Autoridade Policial solicitação de informações provocada por remessa de ata de assentada referente ao caso acima descrito.

Nesta ata de assentada se encontram fundamentos e alegações tanto do Ilmo. Promotor e do MM. Juiz sobre o entendimento e atuação desta Autoridade Policial os quais, em minha modestíssima opinião, estão um pouco equivocados quanto aos seus próprios poderes e atribuições, quanto aos do Delegado de Polícia em atuação nos “postos avançados dos Juizados Especiais”.

Destacam-se os seguintes trechos:

1) O Promotor em sua manifestação afirma que a conduta do nacional A. F. Ar. se caracteriza como infração de menor potencial ofensivo, “idealizada nos preceitos normativos dos art. 13-A da Lei 10671/03 e art. 40 do DL 3688/41”.

Mais adiante o órgão do MP considera o entendimento e atuação da Autoridade Policial como “indevidos”, alegando que ficou impossibilitado de realizar a audiência e oferecer ação penal em razão da dispensa do nacional autor da conduta.

Finaliza o membro do Parquet asseverando que “comportamentos como esses desnaturam a própria presença do MP e da Autoridade Judiciária, pois a dispensa indevida de qualquer pessoa obsta a realização de qualquer ato no posto avançado.”

2) O MM. Juiz em suas manifestações revelou interpretação, a meu ver, violadora e – agora sim – teratológica de norma da lei 9099/95. Afirmou o magistrado que:

“Não cabe a Autoridade Policial, presente o MP e Judiciário, em regime de plantão, fazer juízo de valor da ocorrência apresentada, uma vez que a lei 9099/95 é expressa em determinar a apresentação do autor do fato, tão logo registrado o termo circunstanciado à audiência preliminar (...).”

Em seguida, o MM. Juiz concluiu que o exercício de uma das atribuições do Delegado de Polícia por esta Autoridade Policial – a análise e tipificação de condutas – caracterizaria falta funcional grave (?!), a ser sindicada.

Ao final, após determinar a extração de peças dos autos para instrução de ofícios endereçados as mais importantes Autoridades do Estado, o magistrado encerra a assentada com um paradoxal “aviso” a todas as Autoridades Policiais de que atuações como a deste Delegado de Polícia – simples análise e tipificação de uma conduta- serão entendidas pelo MM. Juiz como a consumação do crime de prevaricação (artigo 319 do CP), a merecer repressão penal imediata, com uso de força policial (!?!?) se necessário.

Apesar de divergência de idéias ser sempre evento salutar e provocador de evoluções em todos os campo do conhecimento humano, no caso em tela não se trata de mera inconformidade do promotor com a tipificação dada por esta Autoridade Policial à conduta do nacional conduzido na posse de uma “caneta laser”. Porém, uma breve análise da conduta do nacional, descrita pelos policiais militares nos autos do registro de ocorrência, faz-se necessária.

Conforme explicado anteriormente, o artigo 13-A da lei 10671 – o qual define exatamente a conduta praticada pelo conduzido – não tem natureza de norma penal incriminadora, mas sim de norma que prevê conduta passível de sanção administrativa.

Ainda que se entendesse como o Ilmo. Promotor e combinasse o artigo 13-A da lei 10671/03 com o sugerido artigo 40 do Dec.-Lei 3688/41 – violando, s.m.j. o Princípio da Especialidade na tipificação de condutas, clara ainda a atipicidade da conduta descrita.

Diz o preceito do artigo 40 do Dec-lei 3688/41:

“ Art. 40. Provocar tumulto ou portar-se de modo inconveniente ou desrespeitoso, em solenidade ou ato oficial, em assembléia ou espetáculo público, se o fato não constitui infração penal mais grave;

Pena – prisão simples, de quinze dias a seis meses, ou multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis.

A conduta de A. F. A., o qual portava ou apontava um feixe de luz produzido por pequeno aparelho, para a torcida adversária localizada no lado oposto da arquibancada onde se encontrava, considerando as dimensões do maior estádio do mundo; não deve ser considerada inconveniente ou desrespeitosa (?!). Um pequeno feixe de luz partindo de uma arquibancada a outra oposta no estádio do Maracanã chegará ao outro lado sem potencial de “perturbar”, “desrespeitar” ou “ser inconveniente”. Quanto mais provocar um tumulto.

Se, por exagerada e – agora sim, teratológica – interpretação se considerar tal conduta formalmente típica à luz do artigo 40 do Dec-Lei 3688/41, forçosa é a conclusão que tal conduta é atípica em seu aspecto material, uma vez que o espetáculo e a paz pública (bens jurídicos tutelados pela norma penal incriminadora) em nenhum momento correram risco de violação ou ataque idôneo.

Porém, conforme se depreende da leitura da ata de assentada, a questão transcende e muito um conflito de interpretações quanto a tipificação de uma conduta.

Trataram as manifestações do Ilmo. Promotor e do MM. muito mais da questão dos limites e harmonização das atribuições dos órgãos executores das Instituições envolvidas.

O promotor em suas manifestações deixa claro que a o entendimento e atuação desta Autoridade Policial – correta e nos limites de suas atribuições constitucionais e legais – “impediu” que o MP executasse seu mister. Destacou também, com exagerada sensibilidade, que tal atuação da Autoridade Policial tornava sem sentido a presença do Ilmo. Promotor e do MM. Juízo no “posto avançado”.

O MM. Juiz deixa claro em sua manifestação uma nova regra processual penal quando afirma que o Delegado de Polícia não tem a atribuição de “fazer juízo de valor” da ocorrência quando na presença do MP e do Juiz.

Ora, temos um problema então. O exercício regular, correto e livre das atribuições do Delegado de Polícia - no caso representados pela análise, tipificação e adoção das medidas cabíveis em relação às condutas dos indivíduos conduzidos ao posto avançado do Jecrim nos estádios – não pode ser considerada espécie de “intromissão” ou ação “indevida”, muito menos mitigado em razão do simples local ou evento onde a Autoridade Policial está. Seus poderes emanam da Constituição Federal e do Código de Processo Penal, e sua atribuição deve ser exercida de maneira uniforme em todas as ocasiões, seja em sede policial ou “posto avançado”.

Quanto a questão da irrelevância da presença do MP e Autoridade Judiciária quando do atuação livre do Delegado de Polícia, questão igualmente provocativa se impõe:

Qual a necessidade da Autoridade Policial nos “postos avançados” se o livre exercício de suas atribuições é encarado quase como um desafio aos órgãos do MP e do Poder Judiciário?

Uma pessoa que realiza conduta claramente atípica à luz das leis penais não deve ser limitada em seus direitos mais do que determina o ordenamento jurídico – no caso, o nacional conduzido sofreria apenas a sanção decorrente da infração administrativa que praticara.

No caso em tela qual a legalidade da detenção do nacional autor de conduta atípica à espera de uma audiência. Aplique-se a sanção administrativa que é a regular conseqüência de sua conduta. Qualquer outra limitação, punição ou cerceamento de seus diretos caracteriza crime de abuso de autoridade por parte de servidor público (Promotor, Juiz ou Delegado) que assim agir.

Neste momento, faz-se necessário ressaltar que tal problema nunca ocorrera antes entre esta Autoridade Policial nos vários plantões que cumpriu ao longo dos anos, acreditando que se trata de questão relacionada ao entendimento pessoal das partes envolvidas do que hipotético conflito entre as Instituições a que pertencem.

Em relação à sugestão do Magistrado de que a conduta desta Autoridade Policial deva ser objeto de sindicância, há que se admitir que o MM. Juízo está correto, uma vez que tal procedimento administrativo pode também apurar condutas meritórias visando o recebimento de elogios publicados em Boletim Interno e outras homenagens previstas em regulamento próprio.

Porém, no que tange ao “aviso” manifestado ao final da assentada, há que se enfrentar três questões:

A mais relevante se refere a real possibilidade da prática de abuso de autoridade por parte de servidor público que determine a detenção ou sanção não prevista legalmente ou em excesso em desfavor a cidadão autor de conduta mão tipificada em nenhuma norma penal incriminadora.

Em segundo lugar, o entendimento um tanto imaturo de que a análise e tipificação de condutas de indivíduos sejam fruto não da apurada técnica e notável saber jurídico dos Delegados de Polícia da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro – mas sim de um sentimento pessoal, a permitir a caracterização de um esdrúxulo crime de prevaricação.

O tipo penal previsto no artigo 319 do CP exige, como elementar do delito, a intenção de satisfazer interesse ou sentimento pessoal.

O entendimento sobre a atipicidade do fato NÃO É, nem de longe, algo que possa ser comparado à intenção de satisfazer um interesse ou sentimento pessoal. Cuida-se, tão-somente, de uma posição jurídica, de um profissional que não é obrigado a comungar das mesmas opiniões esposadas por juízes e promotores.

Nessa esteira se pronuncia a jurisprudência:

“Para se caracterizar o crime de prevaricação, na hipótese em que o funcionário deixa de praticar, indevidamente, ato de ofício, para satisfazer sentimento pessoal, é necessário que a prova dos autos revele que o ato comissivo decorreu de afeição, ódio, contemplação, ou para promover interesse pessoal seu, como expressamente alude o Código Penal, ainda fonte de entendimento da Lei repressiva, em vigor. Se, ao contrário, a omissão decorreu de erro do funcionário, ou por dúvida quanto à interpretação da lei, ou de ordem de serviço, não se pode falar em prevaricação, para cuja prática se exige dolo específico” (TFR, DJU de 14/10/1982,
p. 10.363, Rel. Min. José Cândido).

Equiparar intencionalmente a analise e entendimento das Autoridades Policiais a uma satisfação de sentimento pessoal (ignorando ainda a necessidade de provar a existência de tal sentimento pessoal), visando fundamentar esdrúxula caracterização do delito de prevaricação indica uma tentativa de intromissão indevida do Judiciário nas atividades de outra Instituição da Administração Pública – A Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro.

Tal entendimento revela uma visão por parte do magistrado em questão da Autoridade Policial como órgão subalterno ao Juízo, um mero cumpridor de ordens; o que evidentemente não tem cabimento ou mínimo respaldo jurídico, sendo que são cargos de poderes distintos, inexistindo sombra de hierarquia administrativa, disciplinar ou de qualquer espécie entre tais servidores.

Ressalto que o caso em foco não se trata de questão institucional, uma vez que a maioria absoluta dos Juízes busca, quando surge uma controvérsia, no mínimo um diálogo com a Autoridade Policial e com os demais componentes do posto avançado do Jecrim. Esta sim, uma conduta profissionalmente madura.

Em terceiro lugar, tal entendimento do Magistrado ao afirmar que este Delegado de Polícia cometeu uma prevaricação provoca a seguinte questão:

Por qual motivo não o magistrado não ordenou a prisão em flagrante desta Autoridade Policial, já que todos estavam presentes no momento da recusa? Se o Magistrado entende que o descumprimento de uma atividade de ofício deve sempre ser encarado como prevaricação, obrigatória a conclusão de que o MM. Juízo ele também prevaricou.

Tal paradoxo intrínseco ao entendimento manifestado pelo magistrado é exatamente o elemento que elimina qualquer sustentação de sua manifestação. O magistrado, no caso em tela, não tem base para defender, de plano, sem qualquer outra demonstração fática, a existência da prevaricação.

Neste sentido, o colendo Superior Tribunal de Justiça já decidiu que, sem qualquer demonstração do interesse ou sentimento satisfeito, não há que se falar em prevaricação:

“Processual penal. Habeas-corpus. Delegado de polícia. Prevaricação. Inépcia da denuncia. Trancamento da ação. ‘sentimento pessoal’. Recurso ordinário conhecido e provido. I - o paciente, que é delegado de polícia, foi denunciado por prevaricação porque se omitiu na apuração de diversas ocorrências e instaurações de inquéritos. II - a denúncia que não descreve a contento. O fato criminoso de modo a ensejar a defesa é inepta. O caso, em si, poderia acarretar uma correção administrativa, nunca uma ação penal. Não se descreveu em que consistia o ‘interesse ou sentimento pessoal’ do paciente. III - recurso ordinario conhecido e provido” (RHC 3984/GO, Sexta Turma).

Assim, para que os órgãos encarregados da apuração de delitos e de sua instrução processual possam trabalhar em harmonia, é necessário que sejam afastados todos os traços de autoritarismo, ainda que fundados na preservação da respeitabilidade judicial, lembrando sempre que a atividade de segurança pública atualmente deve ser encarada como um conjunto de ações do Estado de modo a garantir os direitos fundamentais do cidadãos e sua coletividade, em substituição ao conceito antiquado - porém de mais fácil compreensão - de simples “garantia e manutenção da ordem pública”.


Desde já, coloco-me à disposição para qualquer outro esclarecimento.

2 comentários:

  1. Oi prof. Vc ñ colocou o gabarito do processo penal II, a prova é amanha...

    ResponderExcluir
  2. Aline, os gabaritos eram só p AV1 e AV2... agora vc vai ter que ir p a prova com seu conhecimento acumulado.

    Abs.

    ResponderExcluir