terça-feira, 31 de agosto de 2010

Sobre a substituição da pena no tráfico de drogas

Recentemente, o STF decidiu ser possível a substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos no crime de tráfico de drogas, enxergando duvidosa inconstitucionalidade no artigo 44 da Lei n. 11.343/06. Acerca do tema e em razão da excelência do autor, reproduzo texto publicado no site do Juiz de Direito Marcelo Bertasso:

"Ontem o STF deu um enorme empurrão no sentido do abolicionismo penal. Decidindo o habeas corpus nº 97.256 (falei sobre o caso aqui, aqui e aqui), cinco dos ministros da Corte entenderam que o art. 44 da Lei de Drogas é inconstitucional. Por consequência, entenderam que, se o traficante for primário e a condenação inferior a quatro anos de reclusão, poderá ele ser beneficiado com a substituição da pena privativa de liberdades por restritiva de direitos.

O efeito dessa decisão é evidente: milhares de traficantes atualmente presos serão colocados em liberdade, agraciados com o direito de expiar sua culpa prestando serviços à comunidade ou pagando cestas básicas.

No entanto, talvez atentos a isso e prevendo críticas, ministros já se anteciparam em dizer que não estão colocando ninguém na rua. Segundo noticia o Conjur, o Ministro Gilmar Mendes, por exemplo, ressaltou que o STF não está decidindo que haja uma liberação geral para os condenados por tráfico, mas sim permitindo que o juiz faça a avaliação e possa decidir com liberdade qual será a pena mais adequada. 'O tribunal está a impedir que se retire do juiz o poder dessa avaliação', concluiu Mendes.

Com todas as vênias do mundo, não é bem assim Excelência! Apesar do profundo respeito que tenho pelo Ministro, a assertiva é falaciosa. O STF está sim realizando uma liberação geral, e a frase dita parece tentar transferir a responsabilidade dessa liberação ao juiz de primeiro grau, o que, data venia, é descabido.

É bem verdade que, consolidado o entendimento jurisprudencial – o que ocorrerá certamente, porque já são cinco os votos pela inconstitucionalidade -, caberá ao juiz de primeiro grau dar a ordem final, colocando o preso em liberdade. Mas não o fará por vontade própria, e sim curvando-se ao entendimento do STF e cumprindo decisão emanada daquela corte.

O raciocínio é simples. Até ontem, qualquer pessoa condenada por tráfico de entorpecentes, se condenada, tinha que cumprir pena em regime inicialmente fechado, sem direito à substituição de pena. Essa era a regra, sem previsão de exceções (obviamente, julgamentos isolados superavam o obstáculo legal). E isso se dava porque o art. 44 da Lei de Drogas assim estabelecia.

Com a decisão de ontem, o STF extirpa do ordenamento jurídico o art. 44 da Lei de Drogas. Conclusão: a exceção virou regra. A partir de agora, todo traficante condenado a menos de 4 anos de reclusão tem direito à substituição de pena (é dizer, pode ficar em liberdade, trocando a prisão por prestação de serviços comunitários ou prestação pecuniária). Somente em casos excepcionais é que não haverá a substituição (se o traficante for reincidente, por exemplo).

Nesse cenário, o juiz que concede a substituição não o faz por vontade própria, mas porque o STF decidiu que essa substituição é cabível. A liberação não se dá, fundamentalmente, por decisão do julgador de primeiro grau. Ocorre, isso sim, porque o STF assim julgou.

Por outro lado, de fato o juiz pode negar a substituição, mas para isso deve alegar motivos excepcionais e devidamente fundamentados. E, nesse cenário, o espaço de manobra do magistrado para justificar a denegação do benefício é limitadíssimo. Muito raramente será possível negar a substituição. A regra, portanto, será conceder o benefício, em obediência ao que decidiu o STF.

Portanto, rememoremos: i) a partir da decisão de ontem, é possível afirmar que milhares de traficantes, que antes estavam presos (por decisões judiciais de instâncias inferiores) serão colocados em liberdade; ii) isso acontecerá porque o Supremo Tribunal Federal entendeu que traficantes condenados a menos de 4 anos de reclusão têm direito à substituição; iii) somente em casos muito excepcionais os juízes de primeiro grau poderão negar esse benefício aos traficantes.

No mais, basta fazer um juízo hipotético de exclusão: se o STF tivesse decidido pela constitucionalidade do art. 44 da Lei de Drogas, não haveria qualquer liberação em massa de presos.

Colocando os pontos nos is, portanto, temos que a liberação em massa de traficantes, que está para acontecer, decorre unicamente de decisão do STF. A responsabilidade é dele, e somente dele. E é necessário que a Corte, tão corajosa em suas decisões, assuma isso publicamente, ao invés de esquivar-se jogando sobre os juízes de instâncias inferiores a responsabilidade sobre as solturas que inevitavelmente ocorrerão."


Concordo plenamente. O STF vem assumindo um caráter não mais liberal, mas libertário, impedindo iniciativas punitivas em um momento de caótico desenvolvimento da criminalidade. Relegar a decisão ao magistrado de primeiro grau significa atirá-lo aos leões da mídia. Não se está, com isso, conferindo poder ao Judiciário, mas expondo-o. Ademais, parece-me que o STF vem invadindo a seara do Poder Legislativo, a quem incumbe a adoção de critérios de política criminal para a elaboração de normas. Simplesmente alegar violação ao sistema de individualização da pena na impossibilidade de conversão é algo falacioso, já que tal princípio, por seu alcance demasiadamente amplo, deve ser interpretado com razoabilidade. Aliás, o Código Penal limita a substituição da pena em seu texto (somente é permitida em penas iguais ou inferiores a quatro anos, desde que o delito seja cometido sem violência ou grave ameaça). Será, então, que o dispositivo também é inconstitucional, por contemplar uma restrição não prevista constitucionalmente? Se é assim, por que o STF ainda não se manifestou pela substituição da pena no roubo? Com a palavra os Srs. Ministros.

Abraços a todos.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Subtração de veículo e "furto de uso": análise de caso concreto


"Jovem furta van, entra pela contramão e bate em três carros em Copacabana"

RIO - O jovem Diogo Taboada Costa Gonçalves, de 26 anos, furtou uma van e colidiu contra três carros que estavam estacionados, ao entrar pela contramão da Rua Tonelero, uma das mais movimentadas de Copacabana, na madrugada deste domingo. Com o impacto da batida, um dos veículos capotou. Ninguém se feriu.

De acordo com agentes que se preparavam para montar uma blitz da Operação Lei Seca e que foram acionados por moradores, o rapaz apresentava sinais de embriaguez. Diogo contou aos agentes que mora em Copacabana e havia acabado de sair de uma festa, no mesmo bairro.

Segundo a equipe da operação, o motorista da van, linha Copacabana-São Conrado, estacionou o veículo na esquina com a Rua Anita Graribaldi para tomar um café, mas não trancou as portas e deixou a chave dentro da van. Diogo entrou no coletivo e seguiu pela contramão da rua. Perdeu a direção, bateu num Celta, num Peugeot 206 e contra uma Saveiro, que virou. A van ainda atingiu e danificou o portão de um edifício.

Diogo foi levado para a 12ªDP (Copacabana), onde o caso foi registrado."

Fonte: O Globo online, 30/08/2010


Sou suspeito para falar desse caso. A avaliação jurídico-penal da conduta foi feita pelo Delegado Daniel Mayr. As entrevistas posteriores foram concedidas pelos Delegados Daniela Terra e Antenor Martins. Todos grandes amigos. Além disso, trabalho na 12a DP (Leme), onde o caso foi registrado. Ainda assim, pretendo comentar o acerto da não autuação do motorista pelo crime de furto.

A discussão versa sobre o animus rem sibi habendi, associado ao animus domini, que devem nortear a conduta do sujeito ativo na maioria dos crimes patrimoniais. O primeiro elemento subjetivo se refere à intenção de haver a coisa contra a vontade do titular do direito real sobre o bem (subtração invito domino), ao passo que o segundo trata da vontade de incorporar o bem ao patrimônio próprio ou alheio. Inexistindo qualquer uma dessas elementares, não há que se falar em furto (caracterizando-se a figura atípica do "furto de uso").

Costuma-se afirmar, doutrinariamente, que o "furto de uso" não resta delineado quando a coisa é destruída ou seriamente danificada durante o evento. Isso ocorre porque, no mais das vezes, tal particularidade dificulta que se enxergue a intenção de restituir o bem. Todavia, não é o evento lesivo que faz surgir o animus domini, circunstância de caráter puramente psicológico, dissociado, portanto, das demais circunstâncias objetivas do caso. Assim, se a ausência da intenção de haver a coisa para si ou para outrem puder ser demonstrada por outros indícios (como a prova testemunhal), a questão se resolve na responsabilidade puramente civil.

Por conseguinte, no que concerne ao aspecto patrimonial do delito, mostra-se irretocável a opção esposada pela Autoridade Policial no caso em apreço.

Em tempo: sequer há que se falar no furto do combustível, por sua insignificância.

Abraços a todos.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

UPP e mediação de conflitos: riscos jurídicos

Matéria veiculada no site do Jornal Extra, publicada em 19/08/2010, noticia que policiais militares lotados nas UPPs instaladas pelo Estado serão transformados em mediadores de conflitos comunitários, buscando a pacificação de casos comezinhos, como discussões entre vizinhos e hipóteses afins. Para tanto, serão capacitados pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.

Creio que tal iniciativa, apesar de pautada por nobre intenção (fazer com que o poder público ocupe um vácuo deixado pelas organizações criminosas na atividade de dirimir celeumas), é perigosa, pois coloca o policial militar no limiar da usurpação de função. Explica-se: a polícia militar é composta por profissionais especializados em técnicas de policiamento ostensivo (devo dizer, a propósito, que a capacidade operacional da PM, ao menos no RJ, impressiona pela qualidade), mas nem sempre conhecedores dos meandros do direito penal. E as "feijoadas" (gíria para as confusões generalizadas oriundas de motivos risíveis), principal objeto da futura atuação das UPPs, costumeiramente deságuam na prática de infrações penais, ainda que de menor potencial ofensivo (crimes contra a honra, lesões corporais etc.). Tais casos, obrigatoriamente, devem ser avaliados pela Autoridade Policial (Delegado de Polícia), para que seja dada a correta classificação jurídico-penal da conduta. Afinal, nem sempre as fronteiras entre a conduta atípica, uma lesão corporal, um ato de violência doméstica, ou mesmo a tentativa de homicídio, por exemplo, são bem delineadas (muitas vezes são sobremaneira tênues). Nem se fale que os delitos de menor potencial ofensivo são de processamento condicionado à manifestação de vontade do ofendido, permitindo a composição entre as partes. Contrariando o senso comum, muitas destas infrações são de ação pública incondicionada, como o constrangimento ilegal e a violação de domicílio.

A sitação, tal qual criada, assemelha-se muito ao termo circunstanciado lavrado pela polícia militar, admitido em alguns estados-membros, mas já rechaçado pela jurisprudência majoritária (inclusive nos tribunais superiores), uma excrescência que deve ser banida pelo ordenamento jurídico pátrio. Escrevi sobre o tema em um livro, em trecho ora reproduzido:

"(...) Há que se consignar, ainda, que também o termo circunstanciado (procedimento lavrado nas infrações de menor potencial ofensivo) deve ser presidido por autoridade policial. Alguns Estados, tendo em vista o acúmulo de trabalho em Delegacias de Polícia, instituíram a atribuição da Polícia Militar para a formalização de termos circunstanciados, o que nos parece de todo equivocado, já que as atribuições deste órgão são perfeitamente delimitadas na Constituição Federal (artigo 144, § 5º), nelas não se incluindo os atos de investigação, salvo em caso de infrações militares. Sobre o assunto, manifestou-se recentemente o STF, na ADIn 3614, na qual foi declarado inconstitucional (vencido o Min. Gilmar Mendes) o Dec. nº 1.557, do Estado do Paraná, que atribuía a subtenentes e sargentos da Polícia Militar atendimento nas Delegacias de Polícia, nos Municípios que não contassem com Delegado de carreira. No bojo do diploma, encontrava-se o artigo 5º (que estabelecia a atribuição da PM para lavrar termos circunstanciados), também fulminado pelo vício da inconstitucionalidade."

O livro, uma obra coletiva, se chama "Exame da OAB" e é um de meus trabalhos mais obscuros (apesar do bom número de exemplares vendidos), pois fui chamado a participar na última hora, escrevendo toda a parte referente à investigação pré-processual. Apesar disso (e de seu direcionamento à prova da OAB), é um bom livro, que eu recomendo.

Gostaria de saber opiniões sobre o tema, favoráveis ou contrárias (só não vale xingar). Alguém se habilita?

Abraços a todos.

domingo, 8 de agosto de 2010

Os Camaradas: legalização do cloreto de sódio



E esses meliantes ainda acondicionam a substância num saquinho com um cisne desenhado para fingir que é sal.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

O preconceito contra ateus e a Lei nº 7.716/89: caso Datena


No último dia 27, durante a exibição do programa Brasil Urgente (Rede Bandeirantes) o apresentador José Luiz Datena, ao noticiar um crime bárbaro, afirmou que o criminoso não teria "deus no coração". Em seguida, depois de estimular uma pesquisa sobre a crença em deus, passou a destilar palavras preconceituosas, tachando os ateus de "estupradores", "assassinos" e expressões afins.

Sobre o ocorrido, em meio ao incômodo silêncio da imprensa, encontrei excelente artigo do filósofo Helio Schwartsman, publicado no site da Folha de São Paulo. Em linhas gerais, o articulista rebate a associação do ateísmo à criminalidade, mas defende a liberdade de expressão de Datena.

No primeiro ponto, concordo plenamente com Schwartsman. Inclusive destaco alguns pontos de sua argumentação: "embora diversas crenças se apresentem como fonte da moral, esse é um vínculo que não resiste às evidências empíricas disponíveis nem à análise da incipiente ciência moral"; "numa leitura darwinista, a moral nada mais é do que uma coleção de sentimentos como os de justiça, culpa, raiva, lealdade que evoluíram para possibilitar e aprimorar a vida em sociedade".

No entanto, discordo do articulista no segundo ponto, também destacando suas palavras: "Acredito em liberdade de expressão em sua forma forte. O Datena é livre para dizer o que pensa de ateus, e, nós para afirmar o que quisermos de suas declarações, da religião e da própria ideia de Deus. O debate tende a ficar veemente, mas, enquanto ninguém substituir palavras por fogueiras, estamos num jogo razoavelmente civilizado. Se só pudermos dizer o que as pessoas estão dispostas a ouvir sem ofender-se, a liberdade de expressão nem precisaria estar inscrita na Constituição." Em que pese a relevância deste direito constitucional, ele não pode servir de escudo à prática de condutas criminosas (no caso sob análise, refiro-me ao art. 20 da Lei 7.716/89).

Para defender meu ponto de vista, vou me valer de uma colocação de Goeorge Marmelstein: "Lá nos EUA, prevalece o 'laissez-faire, laissez-passer' em matéria de liberdade de expressão, ou seja, o Estado não deve intervir nessa seara, salvo em raras ocasiões. Os norte-americanos acreditam fortemente que as idéias ruins e equivocadas devem ser censuradas não pelo Estado, mas pela própria sociedade, através da manifestação natural de repugnância e desprezo, sem necessitar de qualquer repressão jurídica ao pensamento. Para eles, não cabe ao Estado, nem mesmo ao juiz, definir o que é bom ou ruim em termos de idéias. É o indivíduo, plenamente consciente e eticamente responsável pelas suas escolhas, que deve exercer o juízo crítico e pessoal sobre aquilo que ele considera capaz de lhe engrandecer como ser humano. Por isso, tirando situações excepcionais em que a manifestação das idéias pode ocasionar violência ('hate speech'), é totalmente livre a liberdade de expressão, sobretudo para criticar o governo, as pessoas públicas e os costumes". Não sou um especialista em direitos fundamentais como o prof. Marmelstein, mas me parece que a situação se enquadra precisamente na definição de "hate speech" (discurso de ódio). Ou seja, tem o condão de incitar a violência contra ateus, mostrando-se competamente irracional.

Passando à análise do art. 20 da Lei nº 7.716, é crime "praticar, induzir ou incitar a discriminação ou o preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional". Aplica-se ao forma qualificada, com pena de reclusão de dois a cinco anos e multa, quando a conduta é praticada "por intermédio dos meios de comunicação ou publicações de qualquer natureza".

Guilherme de Souza Nucci (Lei Penais e Processuais Comentadas, 2008) menciona genericamente, como bem jurídico tutelado no referido dispositivo, a preservação da igualdade dos seres humanos perante a lei. Entretanto, a Lei n. 7.716/89 cuida do direito à igualdade especificamente no que tange aos conceitos de raça, cor, etnia, religião e procedência nacional. Por exemplo, não engloba a discriminação ou o preconceito por motivo de gênero, orientação sexual, idade ou condição de pessoa portadora de deficiência. Questiona-se, portanto, se a proteção ao ateísmo poderia ser conferida pelo diploma legal, a par da tutela à liberdade religiosa.

O ateísmo é, em verdade, uma crença, não uma religião. A crença na inexistência de deus. E nisso em nada difere das religiões, cujos seguidores creem na existência divina. Liberdade religiosa é, em última análise, uma decorrência óbvia da liberdade de crença. Aqui, portanto, reside um dos objetos da tutela jurídica do art. 20. Protege-se tanto o direito de crer (em deus, qualquer que seja ele - inclusive nos deuses de mitologias antigas, como a egípcia, que tanto influenciou o cristianismo), quanto o direito de não crer (ou em crer que deus não existe). Por conseguinte, confere-se aplicabilidade à Lei n. 7.716/89 ao caso em comento.

De uma forma ou de outra, considere-se criminoso ou não o comportamento do apresentador, a melhor resposta ao ocorrido deveria ser dada pelo público, buscando programas televisivos mais comprometidos com a informação e com o debate crítico, ao invés de incensar o jornalismo sensacionalista. Será pedir demais?