sábado, 28 de março de 2015

Análise de caso concreto (relatório de inquérito): concurso de pessoas, homicídio e ocultação de cadáver

Cuida-se, o feito, de inquérito policial instaurado para a apuração das circunstâncias da morte e posterior ocultação do cadáver de RGP, cujo corpo foi encontrado, no dia XX de XXXXX de 2014, em uma cova situada em endereço particular, no bairro BG, neste município.


I- O caso

De acordo com as informações carreadas aos autos, policiais militares em patrulhamento pela região de BG foram acionados por transeuntes, que solicitavam averiguação acerca de estranha movimentação verificada em propriedade situada nas proximidades do campo local. Lá chegando, os policiais perceberam que a terra estava remexida, não havendo continuidade do gramado e disposição irregular da folhagem, razão pela qual pediram o auxílio do CBMERJ, iniciando-se a escavação. Não demorou para que encontrassem o cadáver de RGP; rumores surgidos durante a diligência apontaram que os possíveis autores seriam ELG, EAF e JPA.


II- Do contexto probatório

1. Da prova oral

(a) EZS – ESPOSA DA VÍTIMA: Às fls. 06, ainda sem saber detalhes sobre o ocorrido, apenas confirmou que sua irmã ELG estava desaparecida desde o encontro do cadáver da vítima. Ouvida novamente às fls. 12, disse que soube da morte da vítima ao retornar da casa de sua irmã EIN, ocasião em que viu uma viatura da PM parada na porta de sua casa, sendo-lhe informado que ali havia uma pessoa falecida enterrada no quintal de ELG. Consoante informações arrecadadas pela declarante junto a vizinhos, a vítima fora vista pela última vez por volta de 14h. Soube, ainda, que um vizinho de nome LRS teria visto a vítima e ELG fazendo sexo na cama da declarante, o que teria motivado esta a deixar a casa aos prantos, gritando que fora estuprada pela vítima. Consoante a testemunha, ELG estaria presente durante as escavações, mas assim que o corpo foi encontrado, ela desapareceu, assim como EAF, filho de ELG. Por fim, informou que ELG é viciada em drogas e que costumava se prostituir para sustentar o vício, sendo certo que a testemunha fora informada por sua filha que ELG se insinuaria com constância para a vítima. EZS ainda tornou a se pronunciar às fls. 39. Nessa ocasião, reconheceu por fotografia JPA e HRO, sendo este último irmão de WDC, vulgo J. Relatou a testemunha que, depois da morte de RGP, JPA e WDC pararam de frequentar a comunidade da BG. Disse também que o carrinho de mão de RGP sumira no dia do fato e que soube por vizinhos que o carrinho fora usado para o transporte do corpo. Por fim, asseverou que os rumores dão conta da participação de ELG, EAF, JPA e WDC no crime.

(b) MSJ – POLICIAL MILITAR QUE ESTEVE NO LOCAL DO EVENTO: às fls. 07 se limitou a informar que, por informações colhidas no local, os suspeitos do homicídio seriam EAF e JPA.

(c) LAV – POLICIAL MILITAR QUE ESTEVE NO LOCAL DO EVENTO: Às fls. 09, declinou versão idêntica à esposada por seu colega de farda MARIO.

(d) LFS – SOBRINHO DA VÍTIMA E MORADOR DA LOCALIDADE: Às fls. 21 informou que no dia do fato, por volta das 17h, viu EAF correndo, afirmando que matara a vítima, sendo certo que EAF e a mãe ELG desapareceram depois disso. Disse ainda que ficaram escondidos na casa de PAR, mas que, quando souberam que a Polícia Civil fazia diligências naquela localidade, fugiram para o mato, depois tomando o rumo de Angra dos Reis.

(e) LFR – ENTEADA DA VÍTIMA: Às fls. 22, afirmou que realmente avisara à mãe sobre suposto interesse sexual de ELG na vítima, desconfiando que mantivessem um caso.

(f) LRS – AMIGO DA VÍTIMA E MORADOR DA LOCALIDADE: Às fls. 23, contou que, ao entrar na casa da vítima, local em que possuía livre acesso, viu ELG e RGP mantendo relações sexuais no chão da sala, sendo certo que ELG se posicionava sobre RGP. Ao perceber a presença da testemunha, ELG interrompeu o ato e começou a gritar que fora estuprada, momento em que a testemunha, constrangida, deixou o local.

(g) VAC – COMERCIANTE ESTABELECIDO NA LOCALIDADE: Às fls. 28, disse que ouviu rumores dando conta do envolvimento de ELG e EAF no crime em apreço. Informou, ainda, que sabia do envolvimento extraconjugal entre ELG e a vítima.

(h) JPA – AUTOR: Às fls. 42, disse que no dia do fato, por volta das 13h, esteve na casa de ELG e lá encontrou RGP, bebendo, sendo certo que o autor saiu logo em seguida. Posteriormente, ouviu EAF conversando com WDC, ocasião em que EAF informou que brigara com RGP porque este tentara agarrar ELG. O suspeito, então, juntamente com WDC, foi para a casa deste, com o objetivo de fumarem maconha juntos. Horas depois, chegou EAF, que, nervoso, contou ter matado RGP com um machado, enterrando o corpo em seguida. Negou qualquer participação no evento, bem como participação no tráfico de drogas, a despeito de fotos em que faz apologia ao Comando Vermelho.

(i) VRR – TESTEMUNHA PRESENCIAL E FILHA DE ELG: Às fls. 50, informa que estava na casa em que o fato ocorreu, acompanhada por ELG, EAF, JPA e WDC. Por volta das 14h, ELG disse a EAF que fora estuprada por RGP, repetindo a mesma história por várias vezes, até que EAF disse para a mãe que ela teria aquilo que queria e que iria fazer uma merda. Pouco depois, RGP apareceu no imóvel, mas EAF o expulsou, afirmando que precisava conversar com a mãe a sós. Após alguns minutos, RGP retornou, ocasião em que WDC trancou o portão, o que impediria eventual fuga de RGP. Em seguida, EAF retornou com um machado e golpeou a vítima pelas costas. A vítima caiu e recebeu outros golpes na cabeça, falecendo. Depois da execução do homicídio, ELG saiu da casa e a testemunha pôde ouvir EAF falar que agira sem pensar. Logo EAF arranjou um carrinho de mão, onde repousou o corpo da vítima, com a ajuda de JPA e WDC. Também conseguindo uma enxada, os três abriram uma cova no terreno e lá depositaram o corpo, enterrando-o. Os três envolvidos ainda foram para a casa de WDC, onde se banharam, e depois passaram a calmamente lanchar na casa de ELG. Por fim, deu mostras do comportamento absolutamente reprovável de ELG, afirmando que a mãe a induziu a experimentar cocaína e obrigou-a ao uso de álcool, bem como deixou de levar ao conhecimento das autoridades um estupro de vulnerável do qual a testemunha foi vítima.

(j) WDC – AUTOR: Às fls. 51, esposou versão semelhante àquela declinada por JPA, negando participação no evento, mas asseverando que foi chamado por EAF para ocultar o corpo de RGP, embora naquele momento ainda não soubesse quem era a vítima, tendo se recusado. Confirmou a existência de um relacionamento amoroso entre ELG e RGP.

2. Da prova pericial

O laudo do instrumento do crime está acostado às fls. 30, demonstrando sua potencialidade lesiva. O laudo de local está às fls. 53-55, constatando a existência da cova, com um cadáver em seu interior, o qual apresentava ferimentos corto-contundentes na região da cabeça; a porta arrobada que menciona o laudo, frise-se, não pertence à casa de ELG. Também mostra, o laudo, perto da cova descoberta, a presença da enxada e do machado usados no evento delituoso. O Auto de Exame Cadavérico foi igualmente acostado.

3. Análise das provas

O contexto probatório revela que havia relacionamento extraconjugal entre ELG e a vítima, que também mantinha encontros sexuais com outros homens, mediante paga. Ao ser descoberta por um vizinho em plena conjunção carnal com a vítima, ELG logo inventou um estupro, possivelmente para que a irmã, esposa da vítima, não repreendesse seu comportamento. Assim, para que sua versão não fosse desmentida, instigou o filho EAF a matar a vítima, novamente fazendo-o acreditar que sofrera violência sexual. Embora houvesse duas outras pessoas na casa, a saber, JPA e WDC, e ainda que WDC tenha trancado a porta da frente da casa, já com a vítima em seu interior, a ação criminosa foi realizada de ímpeto, ou seja, sem a participação dos demais, com a vítima golpeada pelas costas, sem chance de esboçar reação defensiva. Em seguida, EAF, WDC e JPA decidiram pela ocultação do cadáver, que não contou com a participação de ELG.


III - Dos aspectos penais das condutas praticadas

1. Do concurso de pessoas

Antes de analisarmos as condutas de forma individualizada, imprescindível realizarmos uma breve excursão pelas teorias que permeiam o tema concurso de pessoas, pois se mostrarão relevantes à conclusão do presente relatório.

Há muito são conhecidos os pressupostos e requisitos de configuração do concurso de pessoas, com inserção do liame subjetivo e da relevância causal da conduta nesta última categoria. Ou seja, deve existir uma vinculação psicológica entre os consorciados, bem como as atividades desenvolvidas devem contribuir para a produção do resultado, sendo certo que esse processo causal é limitado pela responsabilidade subjetiva e pelos postulados de imputação objetiva. Visto isso, passa-se à abordagem da autoria.

Autor é quem realiza o tipo penal, ou seja, é a figura principal do crime (ainda que não seja necessariamente quem pratica o comportamento mais reprovável, como se verá). Isso faz com que concurso de pessoas e teoria do crime mantenham laços estreitos entre si. Nessa esteira, importa consignar que, superada a doutrina causalista, fica claro que a pretensão do direito penal não é punir meramente a causação do resultado: interessa tratar da atividade delituosa que visa à provocação do resultado ou, imbuindo a colocação de viés funcionalista, a criação de um risco proibido ao bem protegido, que, quando doloso, pressupõe domínio.

À época da doutrina causalista, em que a conduta era mera relação de causa e efeito, nada mais natural do que um conceito extensivo de autor. Assim, todos aqueles que contribuíam para a produção do resultado eram considerados autores do crime, pois ainda que remotamente realizavam o tipo penal, o que era de todo inconveniente. Assim, os tribunais alemães viram a necessidade de limitar o conceito de autor, ainda que mantendo o dogma causal, e o fizeram através da exigência do chamado animus auctori (vontade de autor, ou seja, a pessoa que quer o crime em seu nome) como elemento subjetivo a ser considerado na formulação da dicotomia autor/partícipe. Quem agisse motivado pelo animus socii (vontade de praticar o crime em nome alheio) seria considerado partícipe. Evidentemente, as perplexidades se avolumaram, principalmente porque a chamada teoria subjetiva permitia que o executor figurasse em uma posição secundária, como nos casos paradigmáticos da criança afogada e do espião russo. 

Sucede-se a essa concepção causalista e consequentemente extensiva da autoria uma abordagem restritiva, já que o finalismo, então na ordem do dia, trouxe para a conduta o dolo e a culpa. Assim, não mais qualquer contribuição causal poderia ser considerada conduta de autor. Dá-se a consagração doutrinária da teoria formal-objetiva, pela qual autor é quem comete a ação descrita no tipo penal (matar, subtrair etc.). 

Porém, mesmo durante o florescimento do finalismo, já surge um embrião daquilo que viria a ser a teoria do domínio do fato, com elaboração de Lobe (1933) e divulgação por Welzel (1936). Todavia, a teoria do domínio do fato só representaria a revolução que foi no pensamento científico com o estudo de Roxin, datado de 1963. Como, no presente relatório, abordamos fatos comissivos dolosos, é nesse aspecto que passaremos a avaliar o domínio do fato, o que, como visto, exige domínio do risco provocado. Assim, para que uma pessoa seja considerada autora de um delito, deve ela dominar a ação criminosa, o que representa a realização do tipo penal. E consoante a teoria do domínio do fato, isso pode se dar de várias formas:

(a) Autoria imediata, consistente na atividade diretamente ligada à execução do delito (domínio da ação). Vige aqui o princípio da autorresponsabilidade. Ou seja, se uma pessoa, no domínio de sua vontade, se responsabiliza pelo cometimento do crime, passa a ela a reivindicar para si a qualidade de autora, com exclusão dos demais intervenientes. Evidentemente, a coisa muda de figura se o autor imediato não domina a própria vontade, ou, em casos especialíssimos, mesmo se houver tal domínio.

(b) Autoria mediata. Aqui, em regra, há o domínio da vontade do executor por outrem, embora essa assertiva deva ser tomada com cautela. Os exemplos mais corriqueiros são os do uso de pessoa com capacidade de entendimento abolida para a prática do crime; a coação irresistível; e os erros de tipo e proibição determinados por terceiros. Há, contudo, situações mais polêmicas, pois não há o completo domínio da vontade alheia, como no caso de erro sobre a pessoa determinado por terceiro e, em hipótese sensivelmente tormentosa, que é debatida hoje no direito europeu, o domínio da organização. Este pressuporia: b.1. estruturação verticalizada da organização; b.2. organização operante à margem do direito; e b.3. fungibilidade de executores.

(c) Coautoria, referente ao domínio funcional. Isto é, há uma atuação coordenada entre duas ou mais pessoas, com a divisão de tarefas relevantes (para Roxin, um ato na fase executória, embora essa não seja a posição majoritária), de modo que surja a imputação recíproca. Por exemplo, no crime de latrocínio, um dos envolvidos executa a morte da vítima, ao passo em que o outro recolhe seus pertences. Isoladamente, as condutas de cada qual caracterizariam homicídio e furto, mas, como ambos agiam em divisão de tarefas, a morte imputada a um se espraia ao outro e vice-versa.

O mais importante, nesse ponto, é estabelecer que a teoria do domínio do fato objeta a existência de uma autoria intelectual, ou a existência de um mandante como autor do delito. Isso fica claro nas palavras de Luís Greco e Alaor Leite, ora reproduzidas: “A contrata B, para que este mate C, o amante de sua esposa. Após anos de maus-tratos nas mãos de P, M pede ao filho F maior de idade que mate o pai tirano. A e M são ‘mandantes’, mas não autores, e sim partícipes, instigadores. Isso com ou sem a teoria do domínio do fato, mais até com ela do que sem ela. Porque sem a teoria, o natural seria entender, arrimado na letra do art. 29, caput, CP, que A e M, já por terem concorrido para o crime, são autores. Só teorias que conectam a autoria à realização do tipo, como a teoria formal-objetiva ou a teoria do domínio do fato, farão de A e M partícipes. (...) A raiz do equívoco é uma confusão entre domínio do fato, autoria mediata por domínio da organização e instigação. É verdade que quem aceita a autoria mediata por domínio da organização transforma algumas hipóteses de instigação em autoria. Mas apenas algumas hipóteses, aquelas em que o comando é dado a partir de uma organização em que se apresentem os três requisitos acima mencionados. A e M não agem a partir de uma organização e não são, portanto, autores.” (GRECO, Luís; LEITE, Alaor. O que é e o que não é a Teoria do Domínio do Fato. Sobre a Distinção entre Autor e Partícipe no Direito Penal, in Autoria Como Domínio do Fato: estudos introdutórios sobre o concurso de pessoas no direito penal brasileiro. São Paulo: Marcial Pons, 2014. p. 37-38). Pensamos também que o equívoco exsurge do senso comum, pelo qual imagina-se a reprovabilidade da conduta do autor invariavelmente maior do que a praticada pelo partícipe. E assim não é. No Código alemão, por exemplo, a instigação é equiparada em punibilidade à autoria. Em nossa legislação, nos dispositivos reservados às agravantes e atenuantes, tem-se a pena elevada com o induzimento ao crime (conduta de partícipe) ou atenuada em razão da obediência hierárquica na execução (conduta de autor). Desconhecendo-se essa particularidade, imagina-se a desproporção em punir o mandante na qualidade de partícipe, com pena supostamente inferior em razão do artigo 29, § 1º, donde surge a ânsia em imputar-lhe conduta de autor; porém essa construção não se sustenta.

Feitas as colocações supra, passamos à individualização dos comportamentos investigados, com a respetiva subsunção penal, ocasião em que ficará clara a importância da menção ao concurso de pessoas.

2- Da adequação típica

Nesse tópico, as condutas serão primeiramente individualizadas, para somente ao final realizarmos uma análise pormenorizada de sua subsunção:

(a) ELG – Ao ser descoberta mantendo relações sexuais voluntariamente com a vítima, deixou o local às pressas, apregoando que fora estuprada. Posteriormente, usou o mesmo argumento para convencer o filho a executar a vítima. Imagina-se, pelas circunstâncias do caso concreto, que assim agiu para que sua irmã, esposa da vítima, não descobrisse o seu caso com o cunhado. Deve ser lembrado que houve ocultação do cadáver, ou seja, se o homicídio não fosse descoberto, poderia prosperar a versão de que ELG fora estuprado, com fuga do molestador. Entretanto, quando da decisão pela ocultação, ELG já não estava no local do crime, não existindo qualquer indício de que tenha participado de prévio debate sobre o tema ou que tenha estimulado o desfecho.

(b) EAF – Depois de convencido pela mãe, indignado, matou a vítima pelas costas, impedindo qualquer reação defensiva. Assim agiu para vingar a mãe supostamente estuprada. Finda a execução, enterrou o corpo com o auxílio de dois amigos.

(c) WDC – Antes da execução, quando do ingresso da vítima na casa de ELG, trancou a porta, o que impediria a fuga da vítima, embora seja certo que não houve combinação prévia, ficando essa particularidade clara nas palavras da testemunha presencial. Após, ajudou a enterrar o corpo.

(d) JPA – Apenas ajudou a enterrar o corpo.

Analisando as condutas descritas, percebe-se que ELG foi quem idealizou o homicídio, valendo-se do induzimento a EAF para conquistar seu intento. Isso não faz dela, consoante visto no item anterior, coautora do homicídio, salvo se adotada a concepção extensiva ou a teoria subjetiva (animus auctori).  Pendendo para a teoria do domínio do fato, tida pela doutrina majoritária como a mais adequada, ELG é partícipe do homicídio, o que não significa pena mais branda, tendo em vista o disposto no artigo 62, II, do CP. Seu homicídio deve ser qualificado pela motivação fútil, dada a intenção de preservar a própria honra (embora já um tanto desbotada na comunidade local, mas não no seio da família), o que apresenta-se em absoluta desproporção para com o desfecho trágico. Também se percebe a incidência da qualificadora referente ao modo de execução que dificulta ou impede a defesa da vítima, comunicável a todos os participantes do evento consoante redação do artigo 30 do CP. Não há base nos autos para afirmar sua participação na ocultação de cadáver. 

EAF, ao seu turno, responde por ocultação de cadáver e homicídio privilegiado-qualificado. Pelas provas arrecadadas é razoável supor que o agente buscava vingar a mãe estuprada ao produzir o óbito da vítima, incidindo destarte a minorante referente ao relevante valor moral (homicídio com diminuição da pena, impropriamente chamado de privilegiado). Entendemos que não há se falar em comunicabilidade da motivação – que não é elementar e é de caráter pessoal – com ELG, restando excluída a hipótese pelo criticado artigo 30 do CP, ainda que existam decisões em contrário. O homicídio do qual é autor direto, por outro lado, é qualificado pelo recurso que impossibilita da defesa da vítima.

WDC, ao trancar a porta da casa, não contribuiu de forma efetiva para com o homicídio, já que a vítima não tentou fugir, surpreendida que foi pelo golpe. Talvez WDC nem soubesse da intenção do amigo, diga-se. Porém, ainda que possuísse ciência, sua conduta é destituída de relevância causal. Ademais, EAF já estava firme no propósito de executar o homicídio, isto é, o ato sequer serviu como instigação. Seu comportamento punível, assim, se circunscreve à ocultação de cadáver, do qual participou em autoria funcional. DEVE SER FRISADO QUE O AUTOR É ADOLESCENTE.

JPA, TAMBÉM ADOLESCENTE, se limitou a executar a ocultação de cadáver, figurando também como autor funcional.


IV- CONCLUSÃO

Pelo exposto, indicio formalmente ELG pelo crime de HOMICÍDIO QUALIFICADO (MOTIVOS DETERMINANTES E MODO DE EXECUÇÃO). Indicio formalmente, também, EAF pelos crimes de HOMICÍDIO QUALIFICADO COM DIMINUIÇÃO DA PENA E OCULTAÇÃO DE CADÁVER. Determino a confecção de PAC dos indiciados. Determino, ainda, a extração de cópias para apuração dos comportamentos de WDC e JPA em AIAI. E, por fim, remeto o feito ao Juízo competente para apreciação do relatório acostado e adoção das medidas pertinentes.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Guardadores de carro e tipicidade da conduta

Reportagem recentemente veiculada no Jornal Hoje tratou de abusos cometidos por guardadores de veículos no RJ. Segundo a matéria, valores exorbitantes são cobrados de quem deseja estacionar seu veículo em via pública. Em resumo, o guardador oferece uma vaga pela "módica" quantia de R$ 30,00, com a garantia de que não existir limite de tempo de estacionamento, privatizando informalmente, destarte, um espaço público. Ao final da reportagem, afirmava-se categoricamente a existência de extorsão. Mas será que há fundamento jurídico nessa assertiva?

O crime de extorsão pressupõe, como é sabido por todos, execução mediante violência ou grave ameaça, sem o que não há a perfeita adequação típica. E é evidente que, nos atos de intimidação, a promessa do mal deve ser clara, não bastando que a vítima se sinta constrangida por imaginada, mas não externada, intimidação. Em Copacabana, atendemos pessoas que iam à DP para registrar supostos crimes de roubo. Na narrativa, as autoproclamadas vítimas alegavam abordagem por moradores de rua, os quais pediam esmola. Assim, doavam pequena quantia ao pedinte, temendo que eventual negativa pudesse determinar uma reação violenta. Hipótese de excessiva suscetibilidade, além de arraigado preconceito social. Transportemos isso para o caso dos guardadores: ainda que o condutor pague por temer um dano ao seu veículo, a menos que haja perceptível imposição da vantagem, não há se falar em constrangimento.

Para aprofundarmos o assunto, devemos questionar se o simples exercício ilegal da atividade de guardador de carros encontra subsunção imediata em algum tipo penal. A discussão se dá em torno da caracterização da contravenção penal prevista no artigo 47 da LCP (exercício ilegal de profissão ou atividade). Em que pesem aplicações literais da lei em várias oportunidades por tribunais diversos, a análise não pode escapar ao estudo da objetividade jurídica. Obviamente, aqui não estamos averiguando a (in)constitucionalidade da LCP, mas indo um passo além nesse debate.

Damásio de Jesus (Lei das Contravenções Penais Anotada, 2001, p. 151) afirma que o artigo 47 protege "o interesse social de que certas profissões sejam exercidas somente por pessoas qualificadas por lei." Ok, é correto. Mas está incompleto. Afinal, por que há o interesse? Não se trata de interesse que decorre de mero descumprimento de um ditame legal. É de todo inadequada a criminalização da simples desobediência à lei, apenas como forma de reforçar a autoridade da legislação, sem que qualquer bem jurídico seja afetado. Assim, não importa que existam leis regulamentando a profissão de guardador de automóveis (e há). Para que se torne minimamente coerente a existência da contravenção, ela deve se prestar a um propósito maior. E esse propósito reside na exigência de qualificação especial para o exercício de profissões ou atividades nas quais a ausência de conhecimento ou habilidade importem risco para o destinatário. Por exemplo, quem exerce função de engenheiro sem a necessária qualificação compromete a qualidade do serviço prestado. Todavia, a profissão de guardador não exige qualquer talento especial, de sorte que seu exercício ilegal é incapaz de atingir bens jurídicos alheios. À mesma conclusão chegou a Turma Recursal do Rio de Janeiro, no Recurso Nº 0039369-75.2012.8.19.0066, de 22 de fevereiro 2013: "RECURSO. EXERCÍCIO ILEGAL DE ATIVIDADE. GUARDADOR DE VEÍCULOS. ATIPICIDADE. CONHECIMENTO DO RECURSO. NÃO PROVIMENTO. NUMA PRIMEIRA ANÁLISE, PODER-SE-IA CONCLUIR PELA TIPICIDADE DA CONDUTA DO AGENTE, TENDO EM VISTA QUE A DISCIPLINA LEGAL DO EXERCÍCIO DA ATIVIDADE NÃO TERIA SIDO OBSERVADA. TODAVIA, NÃO SE PODE DESCONSIDERAR, NA APRECIAÇÃO DA TIPICIDADE DO ATUAR DO RECORRIDO, A CONFORMIDADE DA NORMA PENALIZADORA COM OS DITAMES CONSTITUCIONAIS. EMBORA SE ADMITINDO COMO RECEPCIONADO PELA CARTA MAGNA O PRECEITO CONTIDO NO ART. 47 DA LEI DE CONTRAVENÇÕES PENAIS, SUA APLICAÇÃO DEVE SE DAR EM CONFORMIDADE COM OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS. POR TAL RAZÃO, A REPRESSÃO PENAL DO EXERCÍCIO DE ATIVIDADE PROFISSIONAL SÓ SE JUSTIFICA QUANDO A INOBSERVÂNCIA DOS RESPECTIVOS REQUISITOS LEGAIS SE RELACIONEM COM A QUALIFICAÇÃO PROFISSIONAL. NÃO NOS PARECE QUE TAL OCORRA COM O EXERCÍCIO DA ATIVIDADE DE GUARDADOR DE VEÍCULOS.TRATA-SE DE ATIVIDADE QUE NÃO REQUER FORMAÇÃO PROFISSIONAL, E TALVEZ MESMO POR ESTA RAZÃO SEJA TÃO PRATICADA POR AQUELES QUE NÃO ENCONTRAM COLOCAÇÃO NO MERCADO FORMAL DE TRABALHO. A REGULAMENTAÇÃO DA ATIVIDADE, PORTANTO, OSTENTA CARÁTER NITIDAMENTE ADMINISTRATIVO, MORMENTE LEVANDO-SE EM CONTA QUE É EXERCIDA EM LOGRADOUROS PÚBLICOS. NEM SE DIGA QUE O PODER PÚBLICO FICARIA IMPEDIDO DE REPRIMIR TAL ATIVIDADE, CASO NÃO VENHA A CONTAR COM O RESPALDO DA ESFERA PENAL. ORA, O PODER DE POLÍCIA INERENTE À ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA PERMITE QUE SE IMPEÇA O EXERCÍCIO DE TAL ATIVIDADE, QUANDO ASSIM CONSIDERAR NECESSÁRIO O AGENTE ADMINISTRATIVO. DESTA FORMA, EM SENDO DESNECESSÁRIA A UTILIZAÇÃO DA ESTRUTURA DE REPRESSÃO PENAL PARA COIBIR TAL ATIVIDADE, É DE SE APLICAR O PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA PARA AFASTAR A TIPICIDADE DO ATUAR. VALE DESTACAR QUE TAL POSTURA NÃO IMPORTA EM SE FAZER TÁBULA RASA DA CONTRAVENÇÃO PENAL DE EXERCÍCIO ILEGAL DE ATIVIDADE, NA MEDIDA EM QUE ESTA CONTINUA APLICÁVEL QUANDO INOBSERVADO REQUISITO INERENTE À QUALIFICAÇÃO PROFISSIONAL." Semelhante entendimento esposou o STF, no julgamento do habeas corpus nº 115.046, de relatoria do Min. Ricardo Lewandowski e julgado em 19/03/2013, do qual extrai-se para consignação trecho do voto do relator: "(...) A profissão de guardador e lavador autônomo de veículos automotores, ao contrário do que assentado pela impetrante, está regulamentada pela Lei 6.242/1975, que determina, em seu art. 1º, que o seu exercício 'depende de registro na Delegacia Regional do Trabalho competente'. Entretanto, entendo que a circunstância de os pacientes não possuírem o devido registro na delegacia do trabalho competente não revela grau de reprovabilidade tão elevado a ponto de determinar a aplicação do Direito Penal ao caso. (...) Tenho que, no caso em debate, é possível verificar, além da reduzida reprovabilidade da conduta dos agentes, a presença de todos os demais requisitos para a aplicação do princípio da insignificância, de modo que o reconhecimento da atipicidade material do comportamento dos pacientes, in casu, é medida que se impõe. Isso porque, como se infere dos autos, trata-se de conduta minimamente ofensiva, haja vista que a tipificação da conduta em debate visa garantir que as profissões sejam exercidas por profissionais devidamente habilitados para tanto, e, no caso dos 'flanelinhas', a falta de registro no órgão competente não atinge de forma significativa o bem jurídico penalmente protegido. (...)"

Em sentido contrário, argumenta Marcel Laguna Duque Estrada: "(...) Nessa perspectiva, vem ganhando força entendimento jurídico diverso em relação à tipicidade da conduta prevista no artigo 47 da Lei de Contravenções Penais, para entender que esse comportamento merece a tutela penal. É que esta atividade vem carecendo cada vez mais de controle no âmbito administrativo, penal ou qualquer outro que lhe empreste o efetivo monitoramento. Nesse passo, tem-se que tal atividade dispõe de regulamentação específica em âmbito federal, qual seja, a Lei nº 6.242/75 e Decreto nº 79.797/77, entre outras. Ainda que se considerasse a premissa de que essa profissão não estaria a exigir qualifcação técnica específica, constata-se que a não observância das regras de controle fixadas nas citadas leis resulta em ofensa a bens jurídicos relevantes para a sociedade. De início, é de se concluir que o Poder Público não dispõe de instrumentos administrativos para coibir o exercício irregular, algumas vezes predatório, dessa atividade. Significa dizer que não há como coibir excessos ou inadequações profissionais por parte dos 'flanelinhas', pois não surtiria qualquer efeito multá-los ou cassar-lhe as licenças, tendo em vista que o guardador irregular de veículos nada tem a perder em âmbito administrativo. Desse modo, só restou ao Poder Público, consoante o princípio da fragmentariedade, a sanção penal. Nessa esteira, a experiência tem demonstrado que a proliferação de guardadores de carros irregulares vem acarretando significativo comprometimento à ordem urbana, bem como também à segurança pública e ao próprio patrimônio dos proprietários de veículos. Isso porque a atividade dos 'flanelinhas', sem qualquer controle, tem se multiplicado nas vias públicas, causando múltiplos transtornos para as autoridades de trânsito e para a população em geral. Ademais, esse descontrole encoraja marginais e desviantes de toda sorte a incrementar atividades ilegais travestidos de guardadores de carro. Ressalte-se aqui que a principal e mais comum delas é a própria cobrança de valor fixo para o estacionamento de veículos, sendo que a citada legislação de regência prevê expressamente que esse pagamento é facultativo. Daí se extrai a lesão ao patrimônio dos proprietários de veículos, sendo pequeno o valor, mas grande a quantidade. Sem falar, obviamente, em outros excessos praticados, que crescem proporcionalmente ao descontrole, e que chegam até mesmo à violência. E então já estaríamos falando no comprometimento à segurança pública. Não bastasse isso, diante da legislação que rege tal atividade profissional, pode-se afirmar que essa profissão exige, sim, qualificação técnica específica. O guardador ou lavador de veículos não pode ser pessoa absolutamente despreparada e livre de qualquer requisito técnico. Esse é o chamado 'flanelinha', o causador de todos os citados problemas. Esse profissional deve conhecer as regras legais e aplicá-las, sob pena de, face ao despreparo, causar comprometimento à ordem urbana, à segurança pública e ao próprio patrimônio dos motoristas, sendo certo que estes constituem bens jurídicos alvo da tutela do direito penal. (...)" (disponível em http://www.emerj.tjrj.jus.br/serieaperfeicoamentodemagistrados/paginas/series/15/turmasrecursais_112_aimportanciadaunificacao.pdf). Coaduna com esse entendimento voto emanado pela Juíza Cláudia Márcia Gonçalves Vidal, da Segunda Turma Recursal do Rio de Janeiro, proferido no processo nº 0018750-27.2012.8.19.0066, publicado em 21/08/2014: "(...) O Poder Público não possui instrumentos administrativos para coibir o exercício irregular da citada atividade. Pensar em contrário é aceitar que se submeta o público a uma verdadeira ‘extorsão’, sem que não se faça nada para afastar a atuação de tais pessoas das ruas. E ai daquele que ousa desafiar os preços impostos. Não surtirá qualquer efeito multá-los ou cassar-lhe as licenças, na medida em que o guardador irregular de veículos nada tem a perder em âmbito administrativo. Resta ao Poder Público a sanção penal, especialmente quando se constata a ofensa a bens jurídicos e ao próprio patrimônio dos proprietários de veículos. (...) Pontuo que não vislumbro ser esta uma profissão, mas, sim, uma mera atividade que se encontra regulada em lei. A verdade é que a norma do art. 47 da Lei de Contravenções Penais pretende a cessão não só das atividades profissionais exercidas em desacordo com as condições a que por lei estão subordinadas o seu exercício - o que pressupõe qualificação e aperfeiçoamento técnico do agente - como ainda a cessão de QUALQUER TRABALHO REMUNERADO que, de igual modo, não preencha os requisitos previstos em Lei para o seu exercício. Trabalho remunerado sim. Lê-se como ‘atividade econômica’ todo e qualquer tipo de trabalho onde se tem em troca recompensa monetária. E que, por não ter especificação técnica, dispensa a verificação da aferição de eventual capacitação, por isso não enquadrada como profissão. E não há na lei expressa menção a ter que ser esta atividade especializada. Exatamente, o que se vê na atividade dos chamados ‘flanelinhas’ que em via pública auferem remuneração e que para tal precisam atender exigências que regulamentam a atividade. O espaço que utilizam é o público. E afirmar que se pode dispor do público ante a sua insignificância, é conceber o público minimamente, concepção que ‘rotula’ as ações contra o Estado como ‘normais’. Ora, não há como entender normal o uso do público para fins pessoais. 'Normal' que pichem monumentos em nome da livre expressão. ‘Normal’ que as ruas sejam demarcadas para que se exerça uma atividade remunerada verdadeiramente obrigatória. Desconheço em nossa Cidade quem tenha se negado a pagar ‘flanelinhas’. Afirmar que o exercício da citada atividade prescinde de intervenção é desconhecer o temor que acomete a todos e que no afã de alguns de fazer justiça pelas próprias mãos gerou reações violentas do público. (...) Hoje, é induvidoso o estado de INSEGURANÇA SOCIAL criado nos cidadãos de bem que querem apenas usar o que já é seu em ação que mais se assemelha a uma extorsão. A violência é o resultado do vácuo criado por este entendimento de total liberdade profissional. Ocorre que NÃO ESTAMOS DIANTE DE UMA PROFISSÃO NO EXATO TERMO TÉCNICO DA PALAVRA, mas, sim, de uma ATIVIDADE DE TRABALHO REMUNERADA E QUE É PERNICIOSA A SOCIEDADE, porque exercida em desacordo com a norma. Em áreas impróprias, em áreas não cadastradas, por agentes, sem qualquer relação com a Administração. Uma invenção brasileira ao caos nas cidades. Diriam alguns que os ‘guardadores de rua’ se mantém no vácuo do Estado em reduzir os índices de roubo e furto nas áreas urbanas. Eles surgem exatamente na eleição do mal menor. Porque são um mal quando não subordinados a ação estatal. E a sensação que se tem é de um 'assalto' sem armas. (...) Hoje, o processo permite um leque maior de gradações de pena. E as medidas alternativas se adequam bem a hipótese para cessar a atividade desenvolvida em detrimento da organização estatal. (...) Pretende-se, sim, igual, respeito às Leis. Pune-se o descumprimento da norma. A atividade está regulada em Lei. (...)” Não concordamos: parece-nos que as razões explicitadas se baseiam em exercício de futurologia (pode ser que haja extorsão ou outro delito, mas não vou "pagar para ver"); em crença no poder intimidatório do Direito Penal, em contraste com a ineficácia das demais esferas de poder (quando sabemos que a ineficácia é a mesma); e na relativização do princípio da ofensividade/lesividade; quando não se coloca todos os "flanelinhas" como criminosos em potencial, sempre prontos ao ataque aos "cidadãos de bem". É possível que os guardadores ilegais venham a delinquir? Claro, e por isso devem ser punidos. Mas não simplesmente por serem "guardadores de carro com potencial criminoso".

E a cobrança exorbitante (não imposta coativamente, embora sem dar outra opção ao motorista caso quera estacionar naquela vaga)? Poder-se-ia pensar nesse caso na existência de um processo especulativo, decorrente da alta demanda. Ou seja, possivelmente um crime da Lei de Economia Popular (Lei n. 1.521/54), mais especificamente aquele previsto no artigo 2º, IX. Temos dúvida, entretanto, quanto à constitucionalidade do citado artigo, por violação ao princípio da taxatividade, já que a referência às "especulações ou processos fraudulentos" é muito vaga, especialmente quanto à primeira expressão, em que pesem os exemplos dados a título de "interpretação analógica" ("pichardismo", "bola de neve" e "cadeias", sendo certo que nenhuma dessas hipóteses se assemelha à conduta do guardador). Abstraindo o fato de que o "flanelinha" se apossa indevidamente de um espaço público, não há diferença sensível entre a cobrança abusiva por uma vaga de estacionamento e a fixação do preço da água de coco em valor irreal, devido à alta demanda nos quiosques da praia. Ao menos em tese, porém, a conduta pode ser formalmente agasalhada pelo dispositivo em comento.

A extorsão deixamos para o final, até por pressupor reconhecível ameaça, ainda que implícita. Suponhamos que, ante à negativa de um motorista, o guardador exija imediatamente a vantagem por ele estabelecida (até porque normalmente o pagamento é prévio...), e não tenha qualquer pudor em afirmar que danificará o veículo parado em caso de não-pagamento (algo como "me dê o dinheiro agora, senão seu carro vai ficar irreconhecível"). Estaríamos diante da imposição da tradição de um bem móvel, presente naquele momento em poder da vítima, e que, mediante constrangimento, poderia ser alcançado pelo autor, sem a necessidade de que a vítima "aceite" a transmissão, comportando-se de acordo com a exigência. No nosso exemplo, o autor já pensa em atacar o motorista e tomar seu dinheiro, caso este não se sinta suficientemente intimidado. Tal conduta, assim esmiuçada, aparenta uma extorsão? Tema para um póximo texto...

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Considerações jurídico-penais sobre notícias de O Globo de domingo (31/08/2014)

1- INJÚRIA POR PRECONCEITO E SUBSIDIARIEDADE


Incompatibilidade de gênios. Essa é minha relação com Renato Maurício Prado. Talvez eu seja chato, talvez ele o seja. Mas tenho consciência de minha extrema má-vontade com sua coluna. Contudo, neste domingo ele acertou em cheio, ao tratar das manifestações racistas ocorridas em jogo do Grêmio. Sinteticamente, o colunista, após repudiar o ocorrido, se mostra incomodado com a agressividade dos comentários sobre o caso nas redes sociais. Tem ele absoluta razão. Fica claro que a resposta a prolações odiosas é o incremento do ódio. E isso nos leva a refletir sobre a utópica intervenção penal mínima. 

Diz-se que o Direito Penal é subsidiário porquanto encerre a mais drástica das formas de controle social, uma vez que nenhuma outra apresenta tão intensas repercussões à esfera de liberdades individuais. A assertiva, contudo, vem perdendo força ante à realidade. No caso em apreço, a jovem flagrada ofendendo um jogador, se levada a Juízo, sujeitar-se-ia a uma pena privativa de liberdade de um a três anos de reclusão e multa. Ou seja, pela pena mínima seria teoricamente possível a suspensão condicional do processo. Superada a suspensão, ainda que condenada, a autora certamente escaparia à prisão, substituída por pena restritiva de direitos. Não se deve perder de vista, também, que a infração penal foi multitudinária (se é que a autora é tão preconceituosa como apregoado, parecendo mais que apenas "entrou na onda", embora de forma lamentável, para desestabilizar o jogador rival). 

Vejamos agora as consequências por ela já suportadas: execração pública; apedrejamento de sua casa; demissão do trabalho. Consequências cumulativas mais severas do que as possivelmente advindas da seara penal, algumas das quais, inclusive, por seu caráter infamante, seriam consideradas inconstitucionais se erigidas à categoria de penas. Foi a autora eleita para que a sociedade, contra ela vociferando, expie seus próprios preconceitos e, uma vez saciada, continue encobrindo situações de preconceito sensivelmente mais graves. Merece ela punição por seu arroubo racista? Sem dúvida, mas não pela sanha do justiçamento social informatizado e populista (ao qual se seguem, no mais das vezes, os populismos policial, ministerial e judicial). As punições sociais informais, diga-se, roubaram o lugar do Direito Penal na escala de dramaticidade sancionatória, ao menos nesse caso. Ademais, outra vez se percebe a falha do ramo da ciência jurídica em atingir uma de suas finalidades, qual seja, a de prevenir a vingança privada.


2- A INCRIMINAÇÃO DA BIGAMIA CONSENTIDA É PENALMENTE JUSTIFICÁVEL?


No Estado de Utah (EUA), conhecido pela grande concentração de mórmons, especialmente em Salt Lake City, a Justiça decidiu que a coabitação poligâmica é legal, a despeito das leis estaduais sobre o tema. Apenas o casamento entre mais de duas pessoas continua proibido. Dessa forma, atendeu-se ao pleito de certa corrente da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias - uma dissidência, é verdade -, cujos integrantes mantêm o dogma do casamento plural, tal como preconizado por Joseph Smith, fundador da seita.

Em terras brasileiras, igualmente, a manutenção simultânea de dois ou mais vínculos matrimoniais importa crime (de bigamia), embora a coabitação seja penalmente admitida. Abstraindo as questões religiosas incidentes sobre o tema, questiona-se: se todos os envolvidos estão de comum acordo - isto é, se ninguém é enganado - se justifica a incriminação da bigamia?

A resposta não pode escapar à análise da objetividade jurídica do delito. Consoante PIERANGELI, "a tutela jurídica recai sobre a legalidade do casamento, ou, na expressão de Noronha, 'com a punição da bigamia o Código tutela a ordem jurídica matrimonial que se assenta no casamento monogâmico', que é a regra entre os países em que vigora a civilização cristã." Prossegue o autor: "O bem juridicamente protegido, portanto, encontra-se regulado no Código Civil (Livro IV, Título I, subtítulo I), com especial destaque para os impedimentos matrimoniais (art. 1.521). Podemos, pois, concluir que a tutela jurídica se faz sobre a organização familiar e, muito especialmente, sobre a ordem jurídica matrimonial. Como ensina Manzini, 'o objeto da tutela jurídico-penal é o interesse social em garantir os bens jurídicos bons costumes e ordem familiar, particularmente o instituto da monogamia.'" [1] 

Ressaltemos algumas das expressões utilizadas: monogamia; civilização cristã; bons costumes; ordem familiar.  Ou seja, invariavelmente a incriminação recai sobre objetos que não deveriam (ou, mesmo, não poderiam) ser penalmente tutelados. Afinal, por que a monogamia merece a proteção estatal? Obviamente, temos aqui um dogma social impregnado por religiosidade, de modo que "casamento monogâmico" e "civilização cristã" são termos que devem ser lidos em conjunto. Isso significa que, em boa parte, a objetividade jurídica da bigamia é inspirada por uma doutrina religiosa, que, embora professada pela maioria da sociedade e considerada como um parâmetro de moralidade (e aqui já incluímos também os mencionados "bons costumes"), vai de encontro ao princípio da ofensividade. Nesse mesmo sentido se pronuncia GIOVANE SANTIN: "É notório que o tema envolve questões culturais, morais e religiosas, razão pela qual entendemos que nos crimes contra a família previstos no Código Penal Brasileiro há uma excessiva invasão do Estado no âmbito familiar, o que pode gerar sérias consequências sociais e político criminais, além de violar o princípio da secularização." [2] A liberdade de crença e religião, estabelecida no artigo 5º, VI, da CF, fixa não apenas que ninguém pode ser forçado a contrariar sua crença religiosa, mas também que o Estado não pode prescrever determinadas crenças ou proscrever outras. Como bem assinala GEORGE MARMELSTEIN, "não são apenas os grupos religiosos tradicionais que gozam de proteção, mas até mesmo os mais heterodoxos." [3] 

Assim, por si só a proibição aos matrimônios plurais é questionável, especificamente quando grupos religiosos adotam a postura como parte de sua crença, uma vez que, sendo os vínculos conhecidos e aceitos por todos os envolvidos, não se percebe qual seria o temido grau de afetação social da prática, a ponto de restringir um direito fundamental. Se tivermos em mente, ainda, que o direito penal não pode se prestar à salvaguarda de ideologias, ou mesmo criminalizar modos de vida, cristalino fica o anacronismo da incriminação. Resta, por conseguinte, a análise da "organização familiar" como bem jurídico a ser tutelado, uma vez que a Constituição Federal informa gozar a família de especial proteção (artigo 226). Ora, ainda que a bigamia consentida pelos envolvidos possa afetar a família, tal como definida pelo Estado - o que cremos razoável apenas quando a conduta é fraudulenta -, o Direito Civil pode perfeitamente cuidar do tema, em homenagem à subsidiariedade penal.[4] Resumidamente, fica claro que os "Crimes contra o Casamento" imprescindem de revisão legislativa.


3- APROPRIAÇÃO DE COISA ACHADA E ERRO DE PROIBIÇÃO


A Revista O Globo trouxe interessante matéria de capa, intitulada "Fé no Mar", sobre caçadores de tesouros, verdadeiros garimpeiros dos mares cariocas, os quais se dedicam a encontrar bens perdidos por incautos nas praias, com consequente apropriação e revenda do material arrecadado. Outrora havia lido algo semelhante sobre garimpeiros das areias. Na época, reservei a reportagem para comentários futuros, mas, como invariavelmente ocorre, até hoje não sei onde a coloquei. De toda sorte, em ambos os casos os textos eram sobre aspectos curiosos da prática e tinham um tom mais elogioso do que recriminador. Contudo, a conduta é tipificada como crime, previsto no artigo 169, p. único, II, do Código Penal. Inquestionável a pertinência da opção legislativa quando identificável o proprietário da coisa perdida, impossibilitado de reaver seu patrimônio porque a ambição superou o altruísmo da devolução. No entanto, beira o ridículo quando impossível a identificação do dono do bem. 

Felizmente, é razoável o afastamento do caráter criminoso da conduta por erro de proibição. Acerca do assunto, já me manifestei no livro "Crimes Contra o Patrimônio" (Editora Freitas Bastos): "Interessante salientar que a apropriação de coisa achada é um excelente exemplo de caracterização possível do erro de proibição. A lei penal, por presunção inafastável, é do conhecimento de todos, a ninguém sendo permitido alegar a ignorância como escusa para seu comportamento (artigo 21, 1ª parte, CP). Entretanto, sabendo que o senso comum, em muitos casos, afasta a consciência sobre a ilicitude de um fato típico, o legislador houve por bem normatizar o erro de proibição, consistente em uma falsa representação da realidade, não na ignorância. Humberto Fernandes de Moura escreveu sobre o tema,  traçando um paralelo com o ditado popular 'achado não é roubado'. Em sua argumentação, o jurista traz à baila a teoria da representação social, pela qual certos 'saberes populares' e o senso comum servem de base para a interpretação e a construção do real. As representações sociais acabam por integrar os chamados universos consensuais, em que, aliadas às práticas costumeiras, se contrapõem aos universos reificados, berço das ciências e que nem sempre encontram projeção sobre o senso comum. É certo que a tipificação de condutas ingressa, desde logo, em um universo reificado, mas somente a sua divulgação pode fazer com que sejam reconhecidas como delituosas pela coletividade, o que ocorre em crimes corriqueiros, como o roubo ou o estupro. Em outros casos, a ciência coletiva da incriminação de certa conduta é tão restrita que as práticas usuais levam o indivíduo a crer que sua prática é tolerada pelo direito. Suponhamos o seguinte: uma pessoa, ao caminhar pela rua, vê, perdido, um cordão de ouro, sem qualquer característica que permita a identificação de seu proprietário. É de se esperar que esta pessoa leve a coisa achada para alguma autoridade pública? E em se tratando de uma nota de dinheiro? Infere-se como possível, nas hipóteses, o erro de proibição, que não ocorreria, v. g., no encontro de uma carteira contendo dinheiro e os documentos de seu proprietário, pois, nesse caso, a ética social recomenda a sua imediata restituição." [5] HANS WELZEL assim se pronunciava: "Objeto do juízo de reprovabilidade da culpabilidade é a resolução de vontade antijurídica; esta é reprovável ao autor na medida em que podia ter consciência da antijuridicidade de sua ação e em que essa consciência podia converter-se num contramotivo determinante dos fins." [6] O que só se opera, por óbvio, dentro da "capacidade de conhecimento ético-social".[7] 

Assim, podem os garimpeiros continuar despertando a curiosidade de reportagens sazonais, sem receio de se verem punidos por infrações obscuras.

__________

[1] PERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: parte especial. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. v. 2. p.541.
[2] SANTIN, Giovane. Curso de Direito Penal: parte especial. Coord. Paulo Queiroz. Salvador: JusPodivm, 2013. v. 2. p. 597.
[3] MARMELSTEIN, George. Curso de Direitos Fundamentais. 4.ed. São Paulo: Atlas, 2013. p. 107.
[4] Nesse sentido, Giovane Santin. Op. cit., p. 598.
[5] GILABERTE, Bruno. Crimes contra o Patrimônio. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2013.
[6] WELZEL, Hans. O Novo Sistema Jurídico-Penal: uma introdução à doutrina da ação finalista. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001. p. 123.
[7] IDEM, ibidem, p. 118.

sábado, 21 de junho de 2014

Prescrição nos crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes (trecho do livro)

Com o encaminhamento dos originais do livro "Crimes Contra a Dignidade Sexual" à editora para diagramação e futuro lançamento do terceiro volume da série "Crimes em Espécie", transcrevo aqui pela última vez mais um trecho da obra. Agora é só aguardar a chegada do livro às lojas. Abraços a todos!

A Lei nº 12.650, de 2012, inovou o regramento da prescrição no Brasil, modificando o teor do artigo 111 do Código Penal. O dispositivo, que trata do termo inicial do prazo prescricional, prevê, como regra, o início de seu cômputo com a consumação do crime (I). Em caso de crime tentado, o prazo começa a correr com a prática do último ato executório (II). Apenas dois incisos traziam exceções à regra geral: nos crimes permanentes, o termo inicial é a data da cessação da permanência (III); e, nas hipóteses de bigamia e de falsificação ou alteração de registro civil, quando o fato se tornou conhecido (IV). [*]  A mencionada lei inseriu no artigo 111 o inciso V, assim redigido: “Art. 111 - A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, começa a correr: (...) V - nos crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes, previstos neste Código ou em legislação especial, da data em que a vítima completar 18 (dezoito) anos, salvo se a esse tempo já houver sido proposta a ação penal.” Ou seja, temos mais uma exceção positivada.

De início, cumpre ressaltar que o novo marco inicial do prazo prescricional não se aplica apenas aos crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes do Código Penal. Ou seja, o inciso V não cobre apenas o Capítulo II do Título VI da Parte Especial do Código Penal. Ao se referir a crimes “previstos neste Código ou em legislação especial”, fica claro que a alteração alcança todos os crimes praticados contra crianças ou adolescentes que tenham a dignidade sexual como bem jurídico tutelado, como, por exemplo, os crimes previstos nos artigos 240 a 241-D do ECA.

Com a recente normatização, que por importar tratamento mais severo ao autor do crime deve ser considerada irretroativa, a prescrição só começa a correr nos crimes mencionados quando a vítima completa dezoito anos. Cuida-se de regra protetiva da criança e do adolescente, que, muitas vezes, por medo, vergonha ou falta de apoio familiar, se sentem tolhidos em revelar a ocorrência do crime sexual. Assim, estende-se a oportunidade de agir, com a consequente notícia do fato criminoso, a período posterior ao da maioridade. Assim, suponhamos que determinada criança, contando com oito anos de idade, seja molestada sexualmente por um parente, este um adulto de dezoito anos, não revelando o fato aos pais, por vergonha. Caracterizado o crime de estupro de vulnerável, percebemos que o prazo da prescrição da pretensão punitiva pela pena em abstrato é fixado em vinte anos. No entanto, como o autor possui idade entre dezoito e vinte e um anos, o prazo é reduzido da metade (dez anos). Ao completar dezoito anos de idade, a vítima, ora mais segura, decide por narrar o crime. Adotada a consumação do delito como termo inicial, como previa originalmente o artigo 111 do CP, constatar-se-ia sua prescrição. Contudo, pela nova regra, apenas na data do aniversário de dezoito anos da vítima o prazo teria início. Ou seja, o autor ainda poderia responder criminalmente por sua conduta.

O problema surge quando analisamos a parte final do dispositivo: “salvo se a esse tempo já houver sido proposta a ação penal”. Caso haja propositura da ação contra o autor do crime antes de a vítima completar dezoito anos, a exceção prevista no inciso V deixa de valer. Nesse caso, já não se justifica a proteção intensificada ditada pelo dispositivo. Todavia, em sendo proposta a ação penal, qual será o termo inicial do prazo prescricional? Vamos tomar o crime do artigo 218-A como exemplo. As pessoas envolvidas são as mesmas do exemplo anterior, ou seja, a vítima é uma criança de oito anos de idade e o autor, pessoa com dezoito anos. A pena máxima de quatro anos, cominada como limite máximo ao citado delito, tem prazo prescricional de oito anos. Como o autor é menor de vinte e um anos, o prazo é reduzido para quatro anos. Ao completar quatorze anos, a vítima revela o ocorrido e o fato é levado ao conhecimento do Ministério Público, que oferece denúncia contra o autor. Dias depois, a denúncia é recebida. Nesse caso, quando se considera iniciado o curso do prazo prescricional? São três as orientações possíveis: (a) com a consumação do crime; (b) com a propositura da ação pelo Ministério Público; e (c) com o recebimento da denúncia pelo Magistrado. Filiamo-nos à segunda posição. A data da consumação do crime tem um embasamento teórico razoável, fundado na negação à exceção. Ora, se o início do prazo prescricional aos dezoito anos completados pela vítima é uma exceção à regra geral, sua negação gera o restabelecimento da regra. Essa posição, no entanto, tem um problema prático, que ilustraremos com base no exemplo dado: se o Ministério Público denunciasse o autor do crime do artigo 218-A tão logo cientificado pela vítima, o crime já estaria prescrito. Isso porque o prazo estaria em curso desde a data da consumação do crime, ou seja, seis anos antes. Por conseguinte, teria que esperar, o Ministério Público, para oferecer a ação penal somente depois que a vítima completasse dezoito anos, garantindo a inexistência da extinção da punibilidade, o que soa absurdo. Todavia, cremos que essa posição não deve prosperar. Isso porque a parte final do inciso V não é negativa total da exceção, mas sim estabelece outra: o início do prazo prescricional a partir da propositura da ação penal. Não verificamos pertinência também na terceira posição, que faz uma analogia com o disposto no artigo 117, I, do CP. Não temos, no artigo 111, V, uma causa interruptiva da prescrição, não havendo qualquer problema em o legislador estabelecer hipóteses diferentes de incidência nos dois dispositivos. Parece-nos, ao contrário, que o novo inciso é bem claro em sua redação, sendo certo que a interpretação literal parece a mais plausível.

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[*] Evidentemente, tratamos aqui apenas das situações previstas no artigo 111 do CP. Deixamos propositalmente de abordar casos tratados unicamente pela doutrina e jurisprudência (crimes habituais, por exemplo) ou versados em leis especiais.

quinta-feira, 8 de maio de 2014

Há crime de desobediência no descumprimento de medidas protetivas?

Um dos assuntos que mais enseja discussões e posicionamentos díspares entre os intérpretes do Direito, principalmente no que concerne aos crimes em espécie, diz respeito ao delito de desobediência (artigo 330 do Código Penal), tomando como hipótese de enquadramento típico o descumprimento de ordens judiciais. A questão ganhou ainda especial relevância após a edição da Lei nº 11.340 de 2006 e a consectária especificação de medidas protetivas de urgência, impostas em decisões emanadas por varas especializadas. Sobre o tema, decidiu recentemente o STJ, em acórdão ora transcrito:

“PENAL E PROCESSO PENAL. RECURSO ESPECIAL. CRIME DE DESOBEDIÊNCIA. DESCUMPRIMENTO DE MEDIDA PROTETIVA DE URGÊNCIA PREVISTA NA LEI MARIA DA PENHA. COMINAÇÃO DE PENA PECUNIÁRIA OU POSSIBILIDADE DE DECRETAÇÃO DE PRISÃO PREVENTIVA. INEXISTÊNCIA DE CRIME. 1. A previsão em lei de penalidade administrativa ou civil para a hipótese de desobediência a ordem legal afasta o crime previsto no art. 330 do Código Penal, salvo a ressalva expressa de cumulação (doutrina e jurisprudência). 2. Tendo sido cominada, com fulcro no art. 22, § 4º, da Lei n. 11.340⁄2006, sanção pecuniária para o caso de inexecução de medida protetiva de urgência, o descumprimento não enseja a prática do crime de desobediência. 3. Há exclusão do crime do art. 330 do Código Penal também em caso de previsão em lei de sanção de natureza processual penal (doutrina e jurisprudência). Dessa forma, se o caso admitir a decretação da prisão preventiva com base no art. 313, III, do Código de Processo Penal, não há falar na prática do referido crime. 4. Recurso especial provido” (REsp nº 1.374.653/MG, rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julg. em 11/03/2014).

A compreensão do posicionamento esposado pela Corte passa pela compreensão do teor princípio da subsidiariedade – um dos aspectos do princípio da intervenção mínima – e dos casos em que o descumprimento de uma decisão judicial poderá redundar em crime de desobediência, situações das quais passaremos a nos ocupar doravante.

1- A DESOBEDIÊNCIA E A SUBSIDIARIEDADE DO DIREITO PENAL

Afirma-se que o crime de desobediência, por natureza, comporta alguns dos mais evidentes exemplos de aplicação do princípio da subsidiariedade. Não se trata aqui da subsidiariedade atinente ao concurso aparente de normas, mas dela como princípio-geral do Direito Penal, colocando-o como a última das formas de controle social.

O Direito Penal representa a forma mais drástica de intromissão do Estado na esfera de liberdades de um indivíduo. E, como tal, exige aplicação temperada, para que não represente um mal maior do que aquele que se pretende combater. Justamente por isso, mister uma seleção cuidadosa dos objetos de salvaguarda da norma, para que apenas interesses especialmente relevantes sejam tutelados. Outrossim, apenas as condutas que representem um ataque intenso à objetividade jurídica merecerão que deles se ocupe o Direito Penal. E finalmente, se outras formas de controle social se mostrarem aptas à resolução do evento, devem elas ter primazia, evitando-se a imposição de penas. Pode-se concluir, por conseguinte, que as situações que não demonstrem elevado risco à coesão social são indiferentes penais, donde surge o princípio da intervenção mínima. Cuidando deste princípio, Santiago Mir Puig ensina ser ele integrado pelos postulados da subsidiariedade e da fragmentariedade, este significando que “el Derecho penal no ha de sancionar todas las conductas lesivas de los bienes que protege, sino sólo las modalidades de ataque más peligrosas para ellos”; já em relação àquele, diz o autor que “para proteger los intereses sociales el Estado debe agotar los medios menos lesivos que el Derecho penal antes de acudir a éste, que en este sentido debe constituir un arma subsidiaria, una ultima ratio.” [1] Impõe-se a intervenção mínima ao Direito Penal em virtude daquilo que Mir Puig denomina economia social, ou seja, busca-se o maior bem social, ao menor custo social. [2]. Luiz Regis Prado, ao tratar do tema, esclarece que o princípio da intervenção mínima é uma “orientação de Política Criminal restritiva do jus puniendi e deriva da própria natureza do Direito Penal e da concepção material de Estado de Direito.” [3] Em lição sobre a fragmentariedade penal, mas cuja autoridade pode ser transportada para a intervenção mínima como um todo, o festejado jurista afirma que o Direto Penal é corretamente mantido como um “arquipélago de pequenas ilhas no grande mar do penalmente indiferente”, o que, antes de significar omissão na salvaguarda de bens e valores e na busca de determinados fins, revela-se como um limite necessário ao “totalitarismo de tutela”. [4]

Tem-se, pois, a subsidiariedade como característica inerente a um Direito Penal que se pretenda respeitador dos direitos fundamentais, cumprindo-se uma das missões básicas a que se propõe sua moderna base dogmática, que é a de servir como um instrumento de proteção não apenas da sociedade, mas também como um sistema de garantias do indivíduo contra o arbítrio estatal. Assim, e em compasso com este predicado, vêm os tribunais optando pela solução de casos que aparentemente se subsumam à norma penal na esfera civilista, ou pelas regras que regulamentam as relações trabalhistas, ou, ainda, através de disposições de Direito Administrativo, quando estes meios se mostram eficazes. 

2- A DESOBEDIÊNCIA E O DESCUMPRIMENTO DE DECISÕES JUDICIAIS

Explicitado o conteúdo do princípio da subsidiariedade e visto que o crime de desobediência só resta caracterizado em situações específicas, fica a pergunta: quando o descumprimento a uma decisão judicial poderá ensejar subsunção típica imediata no mencionado dispositivo?

Primeiramente deve ser gizado que, assim como nas obrigações em geral estatuídas por lei, caso a ordem comine astreintes, busca e apreensão ou outra forma de sanção em caso de inobservância, restará afastada a possibilidade de caracterização do delito, em virtude da desnecessidade da intervenção penal. Suponhamos, entretanto, que o magistrado, além de fixar meios coercitivos de natureza patrimonial na sentença, faça expressa ressalva ao crime do artigo 330 do Código Penal em caso de descumprimento. Essa dicção será ineficaz, não se prestando ao fim colimado (a cumulação de sanções só seria pertinente mediante expressa previsão legal).

Fica fácil perceber, portanto, que o crime de desobediência não se opera automaticamente em caso de descumprimento consciente e voluntário de decisões judiciais. A regra, aliás, é a não-caracterização. Só teremos conduta criminosa em caso de descumprimento de decisões mandamentais ou se o magistrado expressamente indica essa possibilidade na sentença, mas sem que haja a imposição de medidas coercitivas de natureza diversa (civil, processual administrativa etc.). No que se refere às decisões proferidas em mandado de segurança, consoante o artigo 26 da Lei nº 12.016 de 2009, há previsão expressa de adequação típica do descumprimento ao artigo 330 do CP, mesmo com a imposição cumulativa de outras sanções: “Constitui crime de desobediência, nos termos do art.330 do Decreto-Lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940, o não cumprimento das decisões judiciais proferidas em mandado de segurança, sem prejuízo das sanções administrativas e da aplicação da Lei nº1.079, de 10 de abril de 1950, quando cabíveis.”

Há se observar, ainda, a existência de tipos especiais de desobediência a ordens judiciais na legislação extravagante. É o caso dos artigos 100, IV, e 101 do Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741 de 2003), por exemplo, que prevalecem sobre a forma genérica em virtude do princípio da especialidade.

Relevante ainda uma breve menção ao artigo 359 do Código Penal. Majoritariamente, pugna-se pelo reconhecimento do delito contra a administração da Justiça apenas quando desobedecida decisão sobre efeitos secundários extrapenais da sentença condenatória, previstos no artigo 92 do Código Penal. Ou seja, imprescindível seja prolatada uma sentença de natureza penal, não cível, conforme já decidiu o STF: “O crime definido no artigo 359 do CP pressupõe decisão de natureza penal e não cível” (RT 79/401). [5] Ivan Luiz da Silva, contudo, adota orientação oposta: “Não obstante seja entendimento de que o tipo penal do art. 359 se refere à decisão que impunha penas acessórias (revogadas na atualidade) ou aos efeitos penais do art. 92 do Código Penal, impende destacar que a descrição típica não distingue entre decisão criminal e decisão cível para efeitos de configuração do delito." [6]

3- JURISPRUDÊNCIA SELECIONADA

Em que pese a exposição feita, é certo que a jurisprudência ainda se mostra insegura quanto ao tema. Não se pretende, neste artigo, a veiculação de verdades absolutas. Assim, trazemos à colação alguns julgados, visando a estimular o debate:

“APELAÇÃO CRIME. RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. PLEITO DE CONDENAÇÃO DO ACUSADO PELOS CRIMES CAPITULADOS NOS ARTIGOS 147 E 359 DO CÓDIGO PENAL. PARCIAL ACOLHIMENTO. AMEAÇA - VIOLÊNCIA DOMÉSTICA - AUTORIA E MATERIALIDADE DEMONSTRADAS - PALAVRA DA VÍTIMA AMPARADA NO CONJUNTO PROBATÓRIO CONTIDO NOS AUTOS. ART. 359 DO CÓDIGO PENAL – ADEQUAÇÃO TÍPICA INCORRETA - POSSIBILIDADE DE ALTERAÇÃO EM SEGUNDO GRAU, VIA EMENDATIO LIBELLI, NOS TERMOS DO ART. 383, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL, PARA O CRIME DE DESOBEDIÊNCIA (ART. 330 DO CÓDIGO PENAL) - DESCUMPRIMENTO DE MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA FIXADAS EM RAZÃO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA DAS QUAIS TINHA O OFENSOR INEQUÍVOCA CIÊNCIA – CONJUNTO PROBATÓRIO SUFICIENTE PARA O ÉDITO CONDENATÓRIO. PRETENSÃO DE CONDENAÇÃO ACOLHIDA. RECURSO PROVIDO, PARA CONDENAR O APELADO COMO INCURSO NAS SANÇÕES DO ART. 147 E ART. 330 DO CÓDIGO PENAL” (TJPR, Ap. Crim. nº 890.743-3, rel. Des. Macedo Pacheco, rev. Des. Antônio Loyola Vieira, julg. em 29/11/2012).

“APELAÇÃO CRIME. AMEAÇA E DESACATO PROVA TESTEMUNHAL. AUTORIA COMPROVADA. IMPROVIMENTO. DESOBEDIÊNCIA Á MEDIDAS PROTETIVAS. ATIPICIDADE. RECURSO DEFENSIVO PROVIDO PARCIALMENTE, POR MAIORIA. 1. O depoimento da vítima e da policial que atendeu as ocorrências é suficiente para comprovar a autoria dos crimes por parte do acusado. 2. O descumprimento de medidas protetivas deferidas em favor da vítima, com base na Lei Maria da Penha, não caracteriza os crimes de desobediência ou desobediência a decisão judicial sobre perda ou suspensão de direito, previstos respectivamente nos artigos 330 e 359, ambos do Código Penal, pois as medidas protetivas previstas na Lei 11.340/2006 são cautelares e visam proteger as vítimas de abuso por parte de seus agressores. Tais medidas são progressivas, podendo evoluir até a prisão preventiva caso as mais brandas se mostrem insuficientes para proteger a ofendida. Recurso defensivo provido parcialmente para absolver o réu, vencido o relator nesta parte” (TJRS, ACR 70044647188 RS, Quarta Câmara Criminal, rel. Des. Gaspar Marques Batista, julg. em 27/09/2012).

“PENAL. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER. DESCUMPRIMENTO DE MEDIDA PROTETIVA DE URGÊNCIA. CRIME DE DESOBEDIÊNCIA. ART. 330, DO CP. PRETENDIDA CONDENAÇÃO PELO ARTIGO 359, DO CP. IMPOSSIBILIDADE. SENTENÇA MANTIDA. 1. O DESCUMPRIMENTO DE DECISÃO JUDICIAL, PROFERIDA EM SEDE DE MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA (LEI Nº 11.340/06), PROIBINDO O AUTOR DE MANTER QUALQUER CONTATO OU APROXIMAÇÃO COM A VÍTIMA, CARACTERIZA O DELITO DE DESOBEDIÊNCIA PREVISTO NO ARTIGO 330, DO CP. 2. INVIÁVEL A PRETENDIDA CONDENAÇÃO PELO CRIME CAPITULADO NO ARTIGO 359, DO ESTATUTO REPRESSIVO, VEZ QUE A SITUAÇÃO DE MARIDO OU COMPANHEIRO NÃO CONSTITUI FUNÇÃO, ATIVIDADE, DIREITO, AUTORIDADE OU MÚNUS, NO SENTIDO LITERAL DA LEI. 3. RECURSO DA ACUSAÇÃO CONHECIDO E IMPROVIDO” (TJDF, APR 276990520118070003 DF 0027699-05.2011.807.0003, 3ª Turma Criminal, rel. Des. Jesuino Rissato, julg. em 29/03/2012).

“APELAÇÃO-CRIME. DESOBEDIÊNCIA. LEI MARIA DA PENHA. TIPICIDADE. INSTAURAÇÃO DA AÇÃO PENAL. Não apenas o aumento da vulnerabilidade da mulher deve ser levado em conta para o reconhecimento da tipicidade das condutas do agente que descumprir as medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha, nas sanções do artigo 359, do Código Penal, como também a necessidade de atendimento à tutela jurisdicional, garantindo o prestígio à moralidade e probidade administrativa. APELAÇÃO PROVIDA” (TJRS, Ap. Crim. nº 70057013179, Quarta Câmara Criminal, Rel. Des. Rogerio Gesta Leal, julg. em 28/11/2013).

“DESOBEDIÊNCIA A DECISÃO JUDICIAL SOBRE PERDA OU SUSPENSÃO DE DIREITO (ARTIGO 359 DO CÓDIGO PENAL). DESCUMPRIMENTO DE MEDIDAS PROTETIVAS PREVISTAS NA LEI 11.340/2006. ALEGADA CARACTERIZAÇÃO DO CRIME PREVISTO NO ARTIGO 330 DO ESTATUTO REPRESSIVO. INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE. INCIDÊNCIA DO TIPO ESPECÍFICO DISPOSTO NO ARTIGO 359. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO. 1. Da leitura do artigo 359 do Código Penal, constata-se que nele incide todo aquele que desobedece decisão judicial que suspende ou priva o agente do exercício de função, atividade, direito ou múnus. 2. A decisão judicial a que se refere o dispositivo em comento não precisa estar acobertada pela coisa julgada, tampouco se exige que tenha cunho criminal, bastando que imponha a suspensão ou a privação de alguma função, atividade, direito ou múnus. Doutrina. 3. A desobediência à ordem de suspensão da posse ou a restrição do porte de armas, de afastamento do lar, da proibição de aproximação ou contato com a ofendida, bem como de frequentar determinados lugares, constantes do artigo 22 da Lei 11.340/2006, se enquadra com perfeição ao tipo penal do artigo 359 do Estatuto Repressivo, uma vez que trata-de de determinação judicial que suspende ou priva o agente do exercício de alguns de seus direitos. 4. O artigo 359 do Código Penal é específico para os casos de desobediência de decisão judicial, motivo pelo qual deve prevalecer sobre a norma contida no artigo 330 da Lei Penal” (STJ, HC 220392 RJ 2011/0235315-0, Quinta Turma, Rel. Min. Jorge Mussi, julg. em 25/02/2014).
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[1] MIR PUIG, Santiago. Derecho Penal: parte general. 7.ed. Barcelona: Editorial Reppertor, 2005. p. 126-127.
[2] Idem, ibidem, p. 126-127.
[3] PRADO, Luiz Regis. Bem Jurídico Penal e Constituição. 3.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 69-70
[4] Idem, ibidem, p. 69-70.
[5] STF, apud SILVA, Ivan Luiz da. Direito Penal: parte especial. Coord. Paulo Queiroz. Salvador: Jus Podivm, 2013. p. 1163.
[6] SILVA, Ivan Luiz da. Op. cit., p. 1163.

sábado, 8 de março de 2014

Estudo de caso: voyeurismo peculiar e adequação típica da conduta

O caso (real):

Mulher entra no quarto da filha de 11 anos de idade, que naquele momento dorme profundamente, e encontra seu companheiro, padrasto da menina, ajoelhado sobre a cama, afivelando o cinto. Percebendo a possível ocorrência de crime sexual, afasta agressivamente o suposto autor do leito da menina, que acorda com a confusão. Ao se aproximar da filha, a mulher vê que sua calcinha está molhada por uma substância com odor semelhante a esperma. Todos os envolvidos prestam declarações na Delegacia, sendo certo que o suspeito nega a imputação, asseverando que apenas pegava um lençol no quarto quando da entrada da companheira, que interpretara a cena de forma equivocada. A criança, ao seu turno, alega nada ter visto ou sentido. Encaminhada a peça de roupa da criança a exame pericial, constata-se que a substância que ali está realmente é esperma.

Estudo de caso (tipificação):

Vamos partir do princípio de que todas as informações recebidas, salvo a autodefesa empreendida pelo suspeito, são verdadeiras. Ou seja, o suposto autor se ajoelhou em frente à criança, que dormia, e ao se masturbar, ejaculou sobre o ventre da menina, sem sequer tocá-la, nem mesmo para afastar a camisola, o que permitiria uma melhor visão do corpo. Qual seria o enquadramento típico mais correto para o evento? Analisemos as possibilidades:

(a) Estupro de vulnerável

O crime de estupro, seja aquele previsto no art. 213 do CP, seja a modalidade especial do art. 217-A, pressupõe seja o ato libidinoso praticado sobre o corpo da vítima (o crime de estupro de vulnerável, afinal, apresenta como conduta típica “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso COM menor de 14 anos”). Isto é, não se exige contato corporal entre sujeitos ativo e passivo, mas é imprescindível que o ato recaia sobre a vítima. Seriam, portanto, hipóteses de estupro de vulnerável: a.1. manter com a vítima coito vaginal, o que exige contato entre autor e vítima; a.2. manter com a vítima qualquer outro ato libidinoso que imponha contato corporal, sopesada, é óbvio, a proporcionalidade da punição (coito anal, coito oral, masturbação, esfregação de genitais enquanto a vítima dorme etc.); a.3. fazer com que a vítima pratique o ato libidinoso em si mesma (obrigá-la a se masturbar, induzir a inserção de objetos na vagina ou no ânus, instar a vítima a se despir etc.).

No caso proposto a vítima em momento algum participou do ato, pois o autor o praticou no próprio corpo (frise-se que não há qualquer indício de toques libidinosos). O ato, por conseguinte, não foi praticado COM ela, afastando-se qualquer alegação de estupro. Ora, mas e a ejaculação, que a atingiu? Ejacular é a consequência fisiológica do ato libidinoso, não o ato propriamente dito (que, na situação concreta, seria a masturbação). O fato de o corpo da vítima restar conspurcado pelo sêmen é um indiferente penal (podemos até vislumbrar injúria real quando uma pessoa ejacula sobre outra com o propósito de humilhá-la, mas não é o caso).

(b) Corrupção de menores

O crime do art. 218-A do CP exige a prática de um ato sexual na presença de pessoa menor de 14 anos, ou que esta seja induzida a presenciá-lo, com o especial fim de satisfazer a lascívia do autor da conduta. Quando a norma menciona a “presença” da vítima, embora não esteja explícito, fica evidente o pressuposto da consciência desta, para que de alguma forma possa ser abalada em sua dignidade sexual pela cena observada. Qualquer outra interpretação conduziria à ausência de risco de lesão ao objeto da tutela penal. Assim, a manutenção de relações sexuais em quarto no qual dorme uma criança, por exemplo, em virtude da excitação sentida pelo casal que se relaciona, deflagrada pela proximidade de terceiros, é conduta atípica. Isso se deve ao estado de inconsciência do sujeito passivo em potencial, o que igualmente ocorre na situação em testilha.

(c) Ato obsceno

Aqui, a ausência de enquadramento típico é óbvia: o ato não foi praticado em lugar público, aberto ao público ou exposto ao público, mas em recinto privado, sem a possibilidade de visualização por pessoas indeterminadas, restando afastado o art. 233 do CP.

(d) Importunação ofensiva ao pudor

De forma semelhante ao explanado no item anterior, o lugar onde se dá a conduta deve ser público ou acessível ao público, de sorte que o art. 61 da LCP também não fica caracterizado.

(e) Exposição de criança ou adolescente a vexame ou constrangimento

O fato de o sujeito ativo não ter acordado a vítima durante o ato libidinoso revela que, além de não querer dar publicidade ao fato, garantindo sua impunidade, não agia o autor com o dolo de embaraçá-la, ocorrendo isso apenas em razão de ter sido surpreendido logo após a satisfação de sua concupiscência. Por conseguinte, nem mesmo no ECA (art. 232) há adequação típica por subsunção imediata. O que não deixa de ser um contrassenso: se o sujeito tirasse uma foto da vagina da vítima para com ela se masturbar no futuro, seria punido pelo art. 240 do ECA, mas não o é se a observa “ao vivo”.


Temos, portanto, uma hipótese que mais se assemelha ao voyeurismo atípico (como olhar uma pessoa nua pelo buraco da fechadura) do que a um crime sexual, por mais reprovável que a conduta possa parecer. Não se nega a possível tendência do autor à pedofilia, mas a lacuna existente na lei penal impede seja a conduta criminalmente sancionada.

sábado, 8 de fevereiro de 2014

Introdução ao tráfico de pessoas

Palinha do livro sobre crimes sexuais, quase finalizado. Em breve entrego o texto à editora para publicação. Enquanto isso, continuo soltando amostras para que o blog não fique abandonado, se sentindo rejeitado. Abraços a todos!

“Em meados do século XIX, rejeições ao tráfico de pessoas negras africanas para práticas escravistas tomaram fôlego. Junto a essa urgência, não mais humanitária que econômica, agregou-se a preocupação com o tráfico de mulheres brancas para prostituição. Apesar de podermos estabelecer relações entre tais fenômenos, é preciso ficar claro que são acontecimentos distintos, pois são movidos por preocupações diversas. A elaboração da categoria tráfico de mulheres brancas, além de trazer consigo um racismo latente, se fez com base no empenho em proteger o ideal de pureza feminina.”[1]  O texto de Anamaria Marcon Venson e Joana Maria Pedro reflete bem o início da preocupação jurídica com o tráfico de pessoas para fim sexual, originalmente focado nas mulheres que se deslocavam entre fronteiras para exercício da prostituição.

O Criminal Law Amendment Act, de 1885, talvez seja o primeiro diploma jurídico a se ocupar do tema, embora não de forma exclusiva. Mas apenas em 1904 (em 1902 a questão já fora abordada na Conferência de Paris) o Brasil começa a demonstrar preocupação com o fenômeno, figurando como signatário do Acordo para a Repressão do Tráfico de Mulheres Brancas, patrocinado pela Liga das Nações e internalizado em 1905, através do Decreto nº 5.591. Esse acordo visava a coibir o aliciamento de mulheres para prostituição no estrangeiro. Explicam Anamaria Venson e Joana Pedro: “Na virada do século XIX para o XX, a prostituição era considerada uma ameaça ao corpo, à família, ao casamento, ao trabalho e à propriedade, foi entendida como 'doença' e tornou-se alvo de planos de profilaxia. As prostitutas eram perseguidas por serem consideradas empecilhos à civilização, à 'limpeza moral' da cidade, e, por isso, sua circulação deveria ser controlada e suas casas deveriam ser afastadas para espaços confinados, definidos por reformas urbanas. É também dessa época a invenção da associação entre mulher e debilidade/doença. Essa noção está em jogo nas associações entre doença e passividade. A discursividade que constituiu a prostituição como um problema só foi possível mediante a medicalização e o policiamento da sexualidade, e o tráfico tornou-se dizível entrelaçado aos discursos médico e policialesco investidos no rechaço à prostituição. Prostituição e tráfico de pessoas, no modo como são reapropriados hoje, são invenções coincidentes. Ora, as inquietações a respeito de tais práticas não foram exatamente um efeito de preocupações humanitárias, afinal, a noção de direitos humanos tornou-se dizível décadas depois.”[2] 

A partir daí, houve vários documentos internacionais abordando o tráfico de pessoas, a saber: (a) Convenção Internacional para a Supressão do Tráfico de Escravas Brancas (1910); (b) Convenção Internacional para a Repressão do Tráfico de Mulheres e Crianças (1921); (c) Convenção Internacional para a Repressão do Tráfico de Mulheres Maiores (1933); (d) Convenção e Protocolo Final para a Repressão do Tráfico de Pessoas e do Lenocínio (1949); (e) Convenção para a Supressão do Tráfico de Pessoas e da Exploração da Prostituição de Outrem (1949). Todavia, merece análise mais detida a Convenção de Palermo (2000), que tem por objeto o crime organizado transnacional. A convenção, promulgada em território brasileiro pelo Decreto nº 5.015/2004, recebeu um protocolo adicional (este promulgado pelo Decreto nº 5.017) em que o Brasil se obriga a prevenir e combater o tráfico de pessoas, em especial mulheres, crianças e adolescentes, embora o diploma não se limite às questões etárias e de gênero. Importa salientar, todavia, que o protocolo não limita o tráfico de pessoas ao exercício da prostituição no estrangeiro, apresentando conteúdo mais abrangente, consoante disposição constante do artigo 3º, a: “A expressão 'tráfico de pessoas' significa o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos.” Verifica-se, pois, que o tratado vai além das questões sexuais, alcançando desde outras várias espécies de intervenção na liberdade pessoal, até ações que importam prejuízo à integridade corporal ou à saúde, ou mesmo que atentam contra a vida da vítima, como é o caso do tráfico de pessoas para remoção de órgãos. A legislação brasileira, contudo, foi tímida na incriminação, pois o artigo 231 do Código Penal contempla exclusivamente o tráfico de pessoas para fim de prostituição ou exploração sexual, que, de todas as situações narradas no protocolo adicional, talvez seja a menos lesiva. Aproveitou-se a redação do antigo crime de “tráfico de mulheres”, outrora um dos crimes contra os costumes, mantendo-o em sua posição sistemática original, quando o melhor seria transportar a conduta para os crimes contra a liberdade individual. Assim, tem-se uma previsão normativa mutilada, aquém daquilo que o Brasil se obrigou internacionalmente a reprimir.

De toda sorte, mesmo no que concerne ao tráfico para finalidade sexual, não são poucas as críticas da doutrina à tipificação. Manifesta-se Paulo Queiroz: “No particular, o discurso dos penalistas mais críticos costuma ser ambíguo, porque, embora proponham a abolição dos tipos penais que criminalizam, indiretamente, a prostituição (lenocínio), em geral são favoráveis à tipificação do tráfico internacional. Alegam que, não raro, as pessoas levadas para o exterior ou trazidas para o Brasil são enganadas pelos traficantes, que ora ocultam que aqui ou lá exercerão a prostituição, ora fazem promessas de emprego e ora prometem uma vida de luxo, ostentação e riqueza. Mas a verdade é que muitas logo terão seus passaportes confiscados e serão autênticas escravas sexuais, sem dinheiro nem liberdade. Que tudo isso acontece ou pode acontecer, embora não se saiba com que frequência, é um fato. Ocorre que, quando houver, estaremos diante de crimes contra a pessoa (sequestro ou cárcere privado, redução a condição análoga a de escravo etc.), já autonomamente punidos, os quais poderão ser qualificados ou terem suas penas aumentadas nesses casos (exploração da prostituição e afins).”[3]  Nucci endossa a posição: “O título do crime é mais adequado do que o conteúdo do tipo penal. Traficar pessoas é um mal quando se destina à exploração sexual, em autêntica forma de escravidão humana. Porém, auxiliar de qualquer maneira uma pessoa a ir para o exterior, para o exercício da prostituição individual – atividade lícita – não deveria ser objeto de incriminação. Tampouco facilitar a entrada de qualquer um que queira se dedicar à prostituição. Encaixem-se essas duas hipóteses em acordos consensuais entre o favorecedor e o viajante, que pretende prostituir-se, lá ou aqui. São maiores, capazes, inexiste fraude, abuso ou qualquer espécie de violência ou ameaça. Não se vislumbra qualquer lesão à dignidade sexual.”[4]  Pensamos da mesma forma. É evidente que o tráfico de pessoas pode ser extremamente pernicioso, uma vez que pressupõe o afastamento da pessoa traficada da sua esfera habitual de convivência, reduzindo sua capacidade de defesa. É evidente, também, que em inúmeros casos de tráfico de pessoas as vítimas são compelidas aos atos sexuais mediante violência ou grave ameaça ou obrigadas ao trabalho extenuante, auferindo apenas parcela diminuta da remuneração, ao invés de perceberem os vultosos pagamentos prometidos por traficantes. Mas é igualmente certo que nem sempre a situação ocorre desta forma. Muitas vezes há natural troca de interesses entre ambas as partes. Não chegamos ao ponto de, como Paulo Queiroz, defendermos que nossa legislação, em artigos tantos, cobre todas as hipóteses em que o tráfico de pessoas pode se mostrar criminalmente relevante, dispensando-se a tipificação autônoma. Entendemos, no entanto, que o tipo penal deveria ser deslocado para os crimes contra a liberdade individual, aumentando seu espectro por um lado – isto é, livrando-se das amarras da criminalização da sexualidade, encampando outras hipóteses, tal qual proposto no Protocolo Adicional – e restringindo sua aplicabilidade apenas às hipóteses verdadeiramente restritivas da liberdade, que atingirão a vítima em sua dignidade. O mero deslocamento de pessoas para finalidade sexual, quando ambas as partes estão de acordo e respeitam os interesses recíprocos, ao contrário de atingir a pessoa em sua liberdade, reafirma-a.

Obviamente, não faltam vozes dissonantes, que compõem inclusive a parcela majoritária da doutrina.[5]  Apregoa-se, em síntese, que o tráfico de pessoas atinge vítimas que, em regra, estão em situação de vulnerabilidade socioeconômica, o que afeta sua capacidade de resistência; que os meios executórios usados pelos traficantes – ardis, constrangimento etc. – afetam a autonomia de vontade da vítima; que ocorre um processo de “coisificação” da pessoa traficada, tratada como mercadoria por aqueles que integram a atividade criminosa; que o tráfico de pessoas é praticado por verdadeiras organizações criminosas, que auferem lucros não apenas com a exploração sexual, mas que se dedicam a diversos outros ilícitos e devem ser combatidas, etc. Correto, correto, correto e... correto! São argumentos irrefutáveis, mas que em nada contradizem o exposto no parágrafo anterior. Não é porque o tráfico de pessoas merece punição – e merece, quando de fato atentatório à dignidade da vítima, em seu aspecto da liberdade individual, mas nunca alheio a essa hipótese – que o artigo 231 do CP se torna automaticamente defensável. Cremos, portanto, que a melhor intepretação do dispositivo é aquela que vincula sua aplicabilidade ao reconhecimento de efetiva lesão à liberdade da vítima.

O crime em comento, inicialmente, tinha por objeto exclusivo o tráfico de mulheres para fim de prostituição (“Promover ou facilitar a entrada, no território nacional, de mulher que nele venha exercer a prostituição, ou a saída de mulher que vá exercê-la no estrangeiro”). Esse panorama legislativo somente veio a ser alterado com a Lei nº 11.106/05, que aboliu a distinção de gênero (“Promover, intermediar ou facilitar a entrada, no território nacional, de pessoa que venha exercer a prostituição ou a saída de pessoa para exercê-la no estrangeiro”). Essa mesma lei foi responsável pela criação do crime de tráfico interno de pessoas, inserindo no Código Penal o artigo 231-A (“Promover, intermediar ou facilitar, no território nacional, o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento da pessoa que venha exercer a prostituição”). A Lei nº 12.015/09, além de acrescentar a referência à exploração sexual aos dos dispositivos, teve o mérito de reproduzir no tráfico internacional de pessoas os mesmos meios executórios do tráfico interno, já que era incompreensível o tratamento desigual aos temas. Outras modificações também foram verificadas, as quais serão especificadas no momento certo.

Aduza-se, por derradeiro, que por questões didáticas artigos 231 e 231-A serão estudados em conjunto, pois, com redação típica extremamente semelhante, nada justificaria a redundância da análise apartada.

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[1] VENSON, Anamaria Marcon; PEDRO, Joana Maria. Tráfico de pessoas: uma história do conceito. São Paulo: Revista Brasileira de História, vol.33, n.65, 2013.
[2] Idem, ibidem.
[3] QUEIROZ, Paulo. Op. cit., p. 573-574.
[4] NUCCI, Guilherme de Souza. Op. cit., p. 189-190.
[5] Nesse sentido, por todos, Luiz Regis Prado (op. cit., p. 881 e 882) e Cezar Roberto Bitencourt (op. cit.,p. 75). Este, em sua obra, aduz que “a despeito da inviabilidade de eliminar a prostituição, que é um mal que aflige a todos os países, uns mais, outros menos, este dispositivo tenta, pelo menos, impedir que prostitutas estrangeiras ampliem esse problema ético-social, que, por si só, já é grande demais.”